O Futuro do Futuro

“As plantas e os animais evoluíram num determinado clima, que está a mudar a uma taxa demasiado rápida para nos adaptarmos suficientemente”

A desflorestação e a emissão de dióxido de carbono têm de ser travadas, mas ativistas e governos vão ter de repensar estratégias para conseguirem convencer as populações a reduzirem a poluição atmosférica, alerta a climatologista Ana Bastos, em entrevista ao Futuro do Futuro. Oiça aqui a entrevista

Todos precisamos de agricultura, mas os apoios à agricultura terão de mudar a bem do clima e da preservação da humanidade, alerta Ana Bastos, climatologista portuguesa radicada na Alemanha, que lidera o grupo de investigação de Interações entre o Clima e Perturbações dos Ecossistemas do Instituto Max Planck para a Bioquímica.

“Temos manifestações dos agricultores porque o governo quer reduzir os subsídios aos combustíveis fósseis e os agricultores estão contra. E uma das coisas que nós sabemos é que precisamos que os subsídios aos combustíveis fósseis acabem o mais rapidamente possível”, sublinha a climatologista numa análise às manifestações de agricultores na Alemanha, que tiveram também réplicas em toda a UE.

Ana Bastos, climatologista, recorda que, desde os anos 70, que se conhecem modelos que indicam um aumento da temperatura devido ao excesso de emissões de dióxido de carbono

Em entrevista ao Podcast Futuro do Futuro, a climatologista não diz para cortar os apoios à agricultura, mas antes propõe que se repense a lógica das compensações para não fomentar o consumo de gasóleo e gasolina que faz proliferar as emissões de dióxido de carbono.

“O problema é: o que é que nós fazemos para compensar pessoas que, de facto, vão ter este custo adicional e que precisam, se calhar, de subsídios noutra área? Eu vejo um bocado de falta de capacidade para articular medidas ambientais e sociais e económicas em conjunto, de forma a chegarmos onde precisamos de chegar”, diz Ana Bastos.

Este mesmo problema explica-se pelo próprio ciclo do carbono. Durante milhões de anos, a natureza foi acumulando no subsolo dióxido de carbono absorvido pelas árvores e animais que morrem. Com o passar do tempo, esses resíduos acabam por se transformar em combustível fóssil que, atualmente, é extraído para alimentar a indústria e os transportes, libertando o dióxido de carbono para a atmosfera a uma taxa bem mais rápida que aquela que a natureza consegue absorver ou dissipar.

“Cada vez que vamos pôr gasolina no carro podemos pensar que estamos a usar carbono que foi produzido ao longo de milhares de milhões de anos por plantas e outro tipo de organismos que, entretanto, nós, em meia hora, mandamos para a atmosfera”, refere Ana Bastos.

O planeta continua a ter “mais ou menos o mesmo carbono” que já existia aquando da respetiva formação, mas esse dióxido de carbono tende a acumular-se na atmosfera devido ao consumo de combustíveis fósseis e também à desflorestação e incêndios que eliminam vegetais e animais que operam como acumuladores e evitam, pelo menos temporariamente, que o dióxido de carbono vá para a atmosfera.

“As nossas sociedades, as plantas e os animais que vivem no planeta evoluíram num determinado clima que, entretanto, está a mudar a uma taxa que é demasiado rápida para aquilo a que nós podemos responder para nos adaptarmos suficientemente”, denuncia Ana Bastos.

Os estudiosos sabem que o dióxido de carbono pode permanecer na atmosfera durante centenas de anos até ser absorvido pela fotossíntese das plantas ou, indiretamente, pelos animais quando comem plantas. O fenómeno é sobejamente conhecido desde o século XIX, mas não faltou quem o tentasse refutar nos últimos 40 anos, alerta Ana Bastos, enquanto alega a existência de lóbis que terão tentado descredibilizar os cientistas nas últimas décadas.

“Desde os anos 70 que a indústria dos combustíveis fósseis tinha modelos que projetavam o aumento da temperatura global em reação ao aumento da emissão de combustíveis fósseis e esses modelos dos anos 70 conseguiram reproduzir a trajetória da temperatura que nós agora observamos”, denuncia Ana Bastos.

Em resposta a um dos desafios lançados pelo podcast Futuro do Futuro, a investigadora trouxe um vídeo produzido pela NASA que tenta ilustrar os resultados nocivos do efeito de estufa com o excesso de dióxido de carbono na atmosfera. Num segundo desafio, que envolve a recomendação de um som, Ana Bastos trouxe “Elegia para o Ártico”, um tema gravado por Ludovico Einaudi, num videoclip em que surgem derrocadas de gelo devido ao efeito do derretimento.

Durante a entrevista ao Futuro do Futuro, a cientista que tem vindo a trabalhar a partir da cidade de Jena, na Alemanha, sublinha que as alterações climáticas estão longe de ser um fenómeno remoto, e já produzem impacto tanto no prato como na carteira dos consumidores portugueses.

“Houve um ano, 2010, se me lembro bem, em que houve várias ondas de calor. Há pessoas que se lembram de uns incêndios na Rússia em que geraram muitos problemas de saúde também por causa da poluição. E tiveram um impacto muito grande na produção agrícola, não só na Rússia” recorda Ana Bastos, reiterando que o aumento da temperatura teve “impacto nas culturas agrícolas, na produção agrícola em várias zonas do hemisfério Norte e levou ao aumento dos preços do trigo, por exemplo, a nível global”.

A cientista do Max Planck dá ainda como exemplos as secas de 2003, 2005 e 2017, e ainda os incêndios de 2017 (ano em que as chamas vitimaram mais de uma centena de pessoas em Pedrógão e Oleiros) no que toca aos efeitos que as alterações climáticas já trouxeram para Portugal.

“Segundo o relatório do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas, o Mediterrâneo é uma das zonas de risco face às alterações climáticas, porque é uma zona semi-árida. Temos invernos mais ou menos húmidos, mas temos já verões muito secos e, portanto, já se torna difícil para a vegetação e para as populações também”, responde a cientista.

As centrais de bio-energia, as construções de madeira, as superfícies absorventes de dióxido de carbono e outras medidas engendradas pela humanidade são bem-vindas, mas Ana Bastos não tem dúvidas de que a atual urgência climática exige não só “parar a desflorestação imediatamente a 100%” como também “reduzir as nossas emissões de dióxido de carbono”.

A climatologista não esconde a veia de ecologista, mas também admite que tanto governos como ativistas possam ter de rever estratégias para atraírem apoios junto da população. “

"O que eu me pergunto em qualquer tipo de intervenção, seja por parte de ativistas, seja por parte de governos ou de outro tipo de comunidade, é: o que é que é mais producente ou contraproducente? E neste momento não sei muito bem até que ponto certo tipo de iniciativas são mais contraproducentes no sentido em que geram resistência por parte das pessoas que nós queremos convencer, por exemplo, a largarem os carros ou a adotarem práticas mais sustentáveis”, descreve Ana Bastos.

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