Saúde Mental

Como está a saúde mental das crianças e dos jovens?

Vinte por cento das crianças e dos adolescentes têm, pelo menos, uma perturbação mental, de acordo com a Organização Mundial de Saúde. Em Portugal, quase 31% dos jovens têm sintomas depressivos, a maioria moderados ou graves. Os psicólogos dizem que estes números são preocupantes, mas os sinais de alerta nem sempre são fáceis de identificar, por isso os pais e a comunidade escolar devem estar atentos.

Como está a saúde mental das crianças e dos jovens?
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Os traumas e as consequências

As fotos são de algumas das crianças e jovens que estão na Casa de Acolhimento Residencial da Rumo, uma Cooperativa de Solidariedade Social, no Barreiro. Têm uma vida o mais normal possível, apesar dos traumas que tentam superar. Pelo menos é esse o objetivo da associação.

Neste momento são 14 crianças e adolescentes, entre os 7 e os 20 anos, "todos eles com processos de promoção e proteção", conta à SIC Notícias, Rui Grilo, psicólogo e diretor técnico da Rumo. Foram retirados às famílias por diferentes situações traumáticas.

"Grande parte poderá ter comportamentos desviantes, como dificuldade em estabelecer limites e regras. Depois há outros que têm outras condicionantes do ponto de vista mental, com questões associadas a depressão ou do foro da personalidade, questões um bocadinho mais pesadas que implicam a necessidade de psicofarmacologia", afirma o psicólogo. Ou seja, são jovens que tomam medicação. O humor e o comportamento precisam de ser estabilizados.

Por norma, a depressão é a perturbação mental mais comum nas crianças e jovens que passam pela Casa de Acolhimento Residencial. "Podemos assumir que uma criança que tenha sofrido maus tratos na infância e na adolescência é muito possível que desenvolva alguns distúrbios, principalmente depressão ou perturbações de personalidade, como a esquizofrenia".

Por vezes, as crianças e jovens chegam à associação já com indicações médicas sobre a saúde mental. Outras vezes, tem de ser a equipa multidisciplinar a avaliar caso a caso. "Vamos identificando sinais disruptivos do ponto de vista comportamental e emocional que depois nos permitem fazer uma avaliação e, eventualmente, encaminhar para uma especialidade", explica o diretor técnico da Rumo. Além das depressões, Rui Grilo conta que há jovens com 15 ou 16 anos que desenvolvem "ideias delirantes, alucinações auditivas, ideias de coisas que não existem". Nestes casos, "a farmacologia é preponderante".

A psicóloga clínica Manuela Bispo, que trabalha com crianças e jovens de risco há vários anos, afirma que uma criança que não foi "devidamente ouvida, valorizada e escutada, que foi muitas vezes criticada", na fase adulta, em situações de pressão, vai reativar sensações de mal-estar que na infância estavam associadas a essas críticas.

Depressão é a perturbação mental mais frequente

Vinte por cento das crianças e adolescentes têm, pelo menos, uma perturbação mental. A estimativa é feita pela Organização Mundial da Saúde. Numa turma de 30 alunos, por exemplo, seis teriam uma perturbação.

Em Portugal, quase 31% dos adolescentes têm sintomas depressivos. Destes, 18,9% têm sintomas moderados ou graves e 10% estão em risco elevado de ter comportamentos suicidários.

Os dados são de um estudo da Escola Superior de Enfermagem de Coimbra, inserido no programa de prevenção de comportamentos suicidários em meio escolar "Mais Contigo", relativo ao ano-letivo 2019/2020.

Participaram no estudo 8. 094 alunos do 3º ciclo do ensino básico e do secundário de 127 escolas do país.

É uma preocupação, o que nos deveria fazer refletir como a saúde mental é de facto uma prioridade. Sem saúde mental, as restantes áreas dificilmente funcionam com equilíbrio.

A depressão é apontada pelos psicólogos como a perturbação mental mais frequente em crianças e jovens. "Há imensos fatores que contribuem e que são transversais na nossa sociedade, como os tempos atuais e o contexto em que as famílias vivem, os conflitos, as dificuldades económicas. Uma família preocupada em sobreviver mensalmente não terá a mesma disponibilidade para dar a mesma atenção aos filhos, a prioridade é outra", afirma à SIC Notícias a psicóloga clínica Manuela Bispo.

Manuela Bispo refere ainda as consequências que chegam com os conflitos entre os casais e as famílias: "antes as pessoas calavam-se, acabavam por deixar passar, por não resolver. Hoje em dia isso não acontece, as pessoas querem resolver e, portanto, vem o confronto e o conflito e as crianças não conseguem interpretar bem isto como sendo situações naturais da relação entre os adultos. Ganham logo medos, preocupações, sentem-se mal, não conseguem travar este mal-estar".

Seja qual for o motivo, a distância dos pais deixa o caminho livre para os medos e as inseguranças, que podem surgir em vários momentos do crescimento dos filhos. Em entrevista à SIC Notícias, o bastonário da Ordem dos Psicólogos, Francisco Miranda Rodrigues, dá como exemplo "o lado mais negro do acesso à tecnologia", remetendo para situações em que os jovens têm acesso a determinados conteúdos digitais sem qualquer orientação dos mais velhos.

Não significa que, por muitos cuidados que existam, não haja acesso a um determinado conteúdo, às vezes, que possa perturbador e possa deixar impacto porque a criança não estava preparada para aquela visualização.

Sinais de alerta: quando é preciso pedir ajuda

Os sinais de alerta nem sempre são fáceis de identificar, em especial nos mais novos. Os pais e a comunidade escolar devem estar atentos.

Há crianças que "não têm a capacidade de verbalizar, apenas se manifestam pelo choro ou outro tipo de mal-estar", por isso, "quando a criança está sempre a chorar, e parece não haver nada que a console, é preciso estar atento", explica Manuela Bispo.

Alterações no apetite e no sono podem ser sinais de alerta para os pais ou cuidadores, que devem ter uma vigilância próxima do pediatra por "saber aquilo que é o mais habitual".

"Tudo aquilo que fuja durante algum tempo, de forma consistente, a alterações no comportamento, sobretudo quando a criança passa a estar sempre com fome ou deixa de ter, passa a dormir mais ou a dormir menos, a desinteressar-se pelas atividades que até aí gostava, deixa de ter interações com outras crianças e adultos da família", deve despertar a atenção dos adultos.

No caso da adolescência, a agitação, a falta de concentração e de interesse pelas atividades, o desinvestimento na aprendizagem tornam-se sinais de alerta também quando começam a ser persistentes. No entanto, Manuela Bispo salienta que cada caso é um caso e que deve ser avaliado individualmente.

Para a psicóloga estas são questões frequentes no crescimento, no entanto, passam a ser preocupantes se não passarem "com o tempo, com conversas, atenção e afeto dos pais".

A psicóloga clínica explica à SIC Notícias que pede muitas vezes aos jovens para fazerem um exercício: questionarem-se se outras pessoas, nas mesmas circunstâncias, também se sentiriam nervosas ou ansiosas. Muitos concluem que sim.

De facto, não está muito longe da verdade, de acordo com Manuela Bispo. E explica porquê.

Há toda uma pressão em que as pessoas quase que se inibem de ser genuínas, autênticas e até de humildemente encararem as suas dificuldades. Há que ganhar estratégias, ferramentas e forças para ultrapassar esta ansiedade. Vivemos a correr para tudo. As pessoas não têm tempo para olhar para si próprias e pensarem no que é que sentem. Hoje passamos ao lado disto tudo, não temos tempo. Ou melhor, não arranjamos tempo. Temos as prioridades mal definidas. A saúde mental devia ser uma delas.

Os pais ansiosos e "super cuidadosos"

Para as crianças e jovens serem ajudados, é preciso que os pais ou cuidadores estejam dispostos a ajudá-las. São "a matriz, a referência inicial das crianças". É o que defende a psióloga clínica.

"Muitas vezes é como se estivessemos a remar contra a maré. Estamos a tentar que a criança ou jovem interiorize e assuma determinadas rotinas e em casa isso é tudo alterado e nada é compreendido. Os pais são a maior referência que as crianças têm. Se os próprios pais não acreditam ou não estão sensibilizados para um determinado problema, o natural é que a criança também duvide que haja outras pessoas que queiram genuinamente ajudá-la".

Em entrevista à SIC Notícias, o bastonário da Ordem dos Psicólogos salienta o papel "muito relevante" dos pais em "garantir a segurança das crianças e jovens. No entanto, refere também o lado menos bom: "se tivermos um pai, uma mãe ou um cuidador que está com muita ansiedade e demonstra muita ansiedade e preocupação, pode entrar até às vezes em mecanismos hiperprotetores, isso também tem as suas consequências".

O olhar atento da psicóloga é semelhante. "Aqueles pais que são super cuidadosos vão criando na criança um receio, um medo de não se aventurar, não fazer nada porque o mundo é perigoso", afirma Manuela Bispo.

Os dois psicólogos recusam-se a culpabilizar os pais. Manuela Bispo considera, no entanto, que é importante compreenderem o motivo das angústias, em vez de se limitarem a dizer que o filho tem uma depressão. O objetivo é sensibilizá-los e ajudá-los e os pais sentirem-se capazes de entender os filhos.

Na Casa de Acolhimento Residencial da Rumo as equipas são, muitas vezes, as famílias daquelas crianças. Os jovens podem entrar e sair quando querem. Sabem que têm de lá estar para jantar. O objetivo é que a rotina seja o mais próximo possível da rotina de uma família.

A forma como estão organizados "tem permitido que possam crescer da forma mais natural possível como se tivessemos um meio natural e familiar", conta Rui Grilo.

Quem por lá passa precisa de "serenidade e tranquilidade", depois dos traumas que viveu. Esse trabalho de "compensação da angústia e do sofrimento é fundamental para desenvolverem as competências para serem adultos saudáveis", remata o psicólogo.

O papel da comunidade escolar

A psicóloga Manuela Bispo trabalha "há muitos anos" com educadoras, auxiliares e monitores de Instituições Particulares de Solidariedade Social. Prepara-as para situações em que uma criança levanta problemas e para lidarem com as famílias e em conjunto encontrarem estratégias.

Para a psicóloga, é o que devia acontecer nas escolas. "A comunidade escolar deve estar atenta, ter uma formação e sensibilização a todos os níveis escolares. Docentes e não docentes deverão ter o apoio de equipas, de técnicos que saibam ajudar também os adultos", disse. E acrescentou: "a escola é, do meu ponto de vista, um dos primeiros sinalizadores de qualquer perturbação".

Já o coordenador do projeto Mais Contigo, da Escola Superior de Enfermagem de Coimbra, apela à necessidade de profissionais de saúde mental nas escolas, face aos resultados que apontavam para quase 31% dos adolescentes com sintomas de depressão.

Questionado pela SIC Notícias sobre uma possível falta de profissionais nas escolas, o bastonário da Ordem dos Psicólogos garante que a resposta está a ser dada e que o número de psicólogos nos estabelecimentos de ensino duplicou em 5 anos. "Os psicólogos cada vez mais assumem um papel de consultoria às direções das escolas", conclui.

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