Que Voz é Esta?

“O bebé mais novo que atendi com depressão tinha 4 meses, um caso de abandono, a mãe deixou-o no hospital porque não tinha condições”

No mais recente episódio do podcast “Que Voz é Esta?”, o pedopsiquiatra Pedro Caldeira da Silva, diretor da Unidade de Primeira Infância do Hospital Dona Estefânia, em Lisboa, fala sobre a saúde mental dos bebés e das crianças em idade pré-escolar e explica como o sofrimento psicológico se manifesta nos mais pequenos: “A depressão nos bebés é igual à dos adultos, com os mesmos sintomas: desinteresse pela relação, irritabilidade, alteração do sono e choro”

José Fernandes

Pode causar estranheza, mas as crianças em idade pré-escolar e até os bebés podem sofrer de ansiedade, depressão e outros problemas de saúde mental, que são mais comuns do que se imagina, embora ainda sejam muito pouco falados.

É nos primeiros três anos de vida que se constrói o aparelho psíquico e as experiências tidas nessa fase são determinantes para o futuro.

“A primeira infância é o período em que o cérebro se está a organizar. A experiência que o bebé tem influencia a maneira como as ligações entre os neurónios se estabelecem. É o período em que o cérebro está mais recetivo às influências do exterior” explica o pedopsiquiatra Pedro Caldeira da Silva, no mais recente episódio do podcast “Que Voz é Esta?”.

O pedopsiquiatra Pedro Caldeira da Silva, diretor da Unidade de Primeira Infância do Hospital Dona Estefânia, em Lisboa, foi o convidado do episódio do podcast "Que Voz é Esta?" dedicado à saúde mental dos bebés e das crianças mais pequenas
José Fernandes

Na primeira infância, que vai dos 0 aos 3 anos, as crianças precisam de estabelecer relações de forte vinculação afetiva a um conjunto reduzido de figuras de referência que lhes transmitam segurança, que funcionem como um refúgio, que as consolem e respondam às suas necessidades, de uma forma individualizada.

Os bebés não têm necessidade de socializar com outros nem de brincar. Têm necessidade de ter alguém que se relacione com eles, que esteja disponível para eles e isso faz-se numa relação de um para um (…). É uma relação que demora tempo a construir. É uma coisa que tem de ser repetida, repetida, repetida para o bebé começar a organizar memórias e antecipar o que vai acontecer, começando a criar uma ideia de como é que as pessoas funcionam”, adianta o diretor da Unidade de Primeira Infância do Hospital Dona Estefânia, em Lisboa.

Nesse sentido, a entrada precoce numa creche, em que os bebés passam os dias inteiros em grupo e com uma atenção pouco individualizada, não é positiva e pode mesmo "deixar marcas”, defende o especialista, considerando que isso "expõe os bebés a uma situação de stress crónico continuado”.

“Uma relação individual de guarda é melhor do que uma relação em grupo. Se tivermos uma ama muito boa e uma creche muito boa, é preferível uma ama”, salienta.

Pedro Caldeira da Silva é diretor da Unidade de Primeira Infância do serviço de pedopsiquiatria do Hospital Dona Estefânia, em Lisboa
José Fernandes

De acordo com o pedopsiquiatra, o não estabelecimento de “vinculações afetivas seguras em idade precoce deixa cicatrizes físicas no cérebro, com alterações nas redes neuronais, que se traduzem em alterações nos comportamentos”.

É sabido que a vivência de situações traumáticas na primeira infância não apenas aumenta o risco de a criança vir a sofrer de perturbações mentais ao longo da vida, como inclusivamente de vir a sofrer de determinadas doenças físicas.

“Experiências adversas na infância, de conflitualidade familiar ou abuso físico, humilhação, abandono e insuficiência relacional, estão diretamente relacionadas com o aumento de risco para hipertensão, diabetes, cancro ou alcoolismo. O corpo guarda memória destas experiências traumáticas e há consequências mais tarde”, alerta.

Mas os efeitos não surgem apenas a longo prazo. A depressão pode instalar-se desde muito cedo e com sintomas semelhantes aos do adulto, nomeadamente “desinteresse pela relação, que é manifestado por um evitamento do olhar, pouco envolvimento com o outro, irritabilidade, choro frequente, poucas manifestações de alegria, alterações do sono e do apetite, um aparente atraso do desenvolvimento por anedonia, e falta de vontade de explorar o mundo”.

Na entrevista, Pedro Caldeira da Silva conta a história de um bebé de apenas quatro meses, o "paciente" mais novo que observou com sintomas de depressão e a quem teve de fazer uma “reanimação psicológica”.

As especificidades do tratamento na primeira infância foi um dos temas abordados neste episódio, que se debruçou ainda sobre a forma como algumas perturbações do neurodesenvolvimento, como o autismo, podem manifestar-se desde os primeiros meses de vida.

“Que voz é esta?” é o nome do podcast do Expresso dedicado à saúde mental. Todas as semanas, as jornalistas Joana Pereira Bastos e Helena Bento dão voz a quem vive com ansiedade, depressão, fobia ou outros problemas de saúde mental, ouvindo igualmente os mais reputados especialistas nestas áreas. Sem estigma nem rodeios, fala-se de doenças e sintomas, tratamentos e terapias, mas também de prevenção e das melhores estratégias para promover o bem-estar psicológico. O podcast conta com o apoio científico de José Miguel Caldas de Almeida, psiquiatra e ex-coordenador nacional para a saúde mental.

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