O maior estudo já realizado sobre o desenvolvimento humano na idade adulta, feito pela Universidade de Harvard ao longo dos últimos 85 anos, concluiu que as relações afetivas estáveis e de qualidade são o fator mais importante na proteção da saúde, como um todo. Mas a união entre duas pessoas é cada vez menos duradoura. Mais de metade dos casamentos terminam em divórcio e tudo indica que as separações irão aumentar ainda mais. “A tendência vai ser para cada pessoa ter duas ou três relações conjugais ao longo da vida”, diz o psiquiatra José Gameiro no mais recente episódio do podcast “Que Voz é Esta?”.
Apesar do elevado número de divórcios, Gameiro desmente a ideia muitas vezes repetida de que, nos tempos que correm, a rutura acontece com demasiada facilidade e sem que os casais se esforcem por manter a relação. “Não é verdade. A maioria das pessoas continua a casar com a ideia de que é para o resto da vida e faz por isso (…). Na maior parte das vezes, a separação é uma decisão muito pensada, muito refletida e que gera sempre dor”, diz.
Segundo o terapeuta, a crítica do outro é um dos fatores que, com o tempo, mais contribui para o desgaste das relações. "As almas gémeas só existem nos filmes. Quando estamos com alguém há algum tempo percebemos que há coisas que não gostamos e que nos irritam. Se formos muito cirúrgicos a atacá-las, a relação não funciona. A crítica sistemática é devastadora.”
Além das diferenças individuais, as diferenças na família de origem de cada um dos membros do casal também tendem muitas vezes a constituir um foco de tensão entre os dois. “Ninguém casa só com a outra pessoa. Casa-se com um pacote, que tem a família atrás e isso pode ser bem complicado", adianta.
O desafio das "cicatrizes emocionais"
A gestão do dinheiro é outra das questões que frequentemente desencadeia desentendimentos e conflitos, assim como o ciúme, que “pode ser completamente destrutivo” para a relação e que é muitas vezes reflexo de uma "insegurança brutal" da pessoa, fruto da sua biografia.
As “cicatrizes emocionais” que cada um carrega do seu passado e que contribuíram para a formação da sua personalidade podem interferir na relação a dois e constituir um obstáculo à estabilidade e felicidade do casal. "Se eu cresci com um sentimento de abandono e vou para uma relação conjugal com medo de ser abandonado, transformo-me numa pessoa que está sempre zangada ou numa melga, sempre a pedir demonstrações de que sou gostado, o que pode ser pesado”, exemplifica.
Poder partilhar com o outro os seus medos, inseguranças e “feridas” mais íntimas, “baixar a guarda” e mostrar as vulnerabilidades de cada um é um dos aspetos que mais fortalece o amor entre as duas pessoas. “A relação é muito boa quando a pessoa sente que pode confiar e falar abertamente das suas coisas mais difíceis com a certeza de que essas coisas não são armazenadas pelo outro como pedras para serem atiradas um dia mais tarde”, explica o psiquiatra, no último episódio do podcast “Que Voz é Esta?”.
A confiança demora tempo a construir e, quando é abalada, dificilmente se restabelece da mesma maneira. É o que acontece, por exemplo, numa situação de infidelidade, que desencadeia sempre uma “crise muito grave” entre o casal.
Ainda assim, José Gameiro assegura que é “possível recuperar completamente e até construir uma relação melhor”, embora “a confiança raramente volte a ser igual”. O psiquiatra ressalva ainda que a ideia que a infidelidade só acontece quando a relação está mal não é necessariamente verdadeira.
“Muitos casais estão bem, do ponto de vista afetivo e até físico, e a infidelidade pode acontecer", salienta. Da mesma forma, a frequência da vida sexual não é necessariamente um barómetro, embora possa ser um reflexo do estado da relação, diz.
O amor protege
Os desafios e ameaças à vida conjugal aumentaram nas últimas décadas, à medida que o valor da felicidade pessoal se tornou mais importante do que o valor da estabilidade familiar e que as relações se tornaram mais complexas, com a normalização do divórcio e das famílias reconstruídas.
“Um primeiro casal é muito simples ao princípio e pode complicar-se com o tempo, enquanto que um segundo ou terceiro casamento é muito complexo logo ao início porque tem os filhos de um lado e os filhos do outro, os ex que podem interferir muito, direta ou indiretamente através dos filhos, e até as famílias dos ex, que são avós dos filhos que estão lá em casa. A hipótese de correr mal nos primeiros tempos é maior”, explica o psiquiatra.
Em situação de crise, não existem fórmulas mágicas, mas há “pequenas técnicas comportamentais” que são transmitidas em Terapia de Casal e que podem ajudar a melhorar a comunicação, aumentar o equilíbrio e a trazer mais bem-estar à vida conjugal.
O que não restam dúvidas e está amplamente documentado é que uma boa relação afetiva “é fortemente protetora” não apenas da saúde mental, como da saúde física, já que ambas estão estreitamente relacionadas. “Se a pessoa tiver uma relação equilibrada do ponto de vista amoroso tende a viver mais anos e de forma mais saudável”, frisa o especialista.
“Que voz é esta?” é o nome do podcast do Expresso dedicado à saúde mental. Todas as semanas, as jornalistas Joana Pereira Bastos e Helena Bento dão voz a quem vive com ansiedade, depressão, fobia ou outros problemas de saúde mental, ouvindo igualmente os mais reputados especialistas nestas áreas. Sem estigma nem rodeios, fala-se de doenças e sintomas, tratamentos e terapias, mas também de prevenção e das melhores estratégias para promover o bem-estar psicológico. O podcast conta com o apoio científico de José Miguel Caldas de Almeida, psiquiatra e ex-coordenador nacional para a saúde mental.