Que Voz é Esta?

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“Um colega meu foi atingido e ficou sem tronco. O que mais me marcou foi andar à procura dos pedaços de carne para devolver à família”

Milhares de ex-combatentes da Guerra Colonial e antigos presos políticos mantêm sequelas psicológicas das experiências traumáticas por que passaram. Num episódio especial do podcast “Que Voz é Esta?”, gravado ao vivo na Livraria Buchholz, por ocasião dos 50 anos do 25 de Abril, Arlindo Jesus, ex-combatente, e Carlos Coutinho, que esteve preso em Caixas mais de um ano, partilharam o seu testemunho, acompanhados por Luísa Sales, psiquiatra e ex-coordenadora do Observatório do Trauma da Universidade de Coimbra

Passadas mais de cinco décadas, as imagens daquele dia, 13 de maio de 1969, continuam “gravadas a fogo” na memória de Arlindo Jesus. Tinha 22 anos e chegara à Guiné há cinco meses, integrado num batalhão de artilharia, quando a unidade foi apanhada por um rebentamento no meio do mato. “Um colega meu foi atingido e ficou sem tronco. O que mais me marcou foi ter de andar à procura dos pedaços de carne para os podermos devolver à família”, recorda.

Meses depois, ele próprio acabaria por ser apanhado por estilhaços, que lhe atingiram vários órgãos. Não morreu por milagre, mas ficou gravemente ferido, carregando até hoje as sequelas físicas do ataque. As marcas psicológicas, porém, são as que mais lhe pesam. Durante décadas, não foi capaz de falar delas. Fechou-se numa concha e reservou-se ao silêncio. “Comecei a beber para anestesiar a cabeça e tentar esquecer ao máximo”, desabafa, no episódio especial do podcast “Que Voz é Esta?”, gravado ao vivo esta semana na Livraria Buchholz, em Lisboa, por ocasião dos 50 anos do 25 de Abril.

Arlindo Jesus tinha 22 anos quando foi mobilizado para a Guiné, integrando um batalhão de artilharia.
Matilde Fieschi

Ao longo dos 13 anos da Guerra Colonial, um milhão de homens foram mobilizados, mais de 10 mil morreram e milhares ficaram feridos. Além das sequelas físicas, ficaram outras marcas. Estima-se que mais de 100 mil antigos combatentes, como Arlindo Jesus, tenham desenvolvido stress pós-traumático.

Torturados pela PIDE

Entre os mais de 30 mil portugueses presos pela PIDE ao longo dos 48 anos de ditadura, muitos também ficaram marcados para sempre, sobretudo aqueles que foram sujeitos a torturas mais violentas. É o caso de Carlos Coutinho, que tem 80 anos e esteve preso em Caxias entre fevereiro de 1973 e abril de 1974.

Na prisão, foi submetido a longos interrogatórios com recurso a técnicas de tortura como a privação de sono. “Numa vez, obrigaram-me a estar 180 horas de pé. Não podia encostar-me às paredes, porque eles não deixavam, então estava sempre a cair ao chão. Eu caía, eles levantavam-me, caía, levantavam-me, caía, levantavam-me, assim continuamente.”

A privação de sono levava-o a ter alucinações com pessoas próximas - era o pai que lhe batia constantemente, o amigo que tentava assassiná-lo, empurrando-o de uma varanda. Durante o dia, o sol ajudava-o a permanecer de pé, mas, com a chegada da noite, a situação tornava-se ainda mais insuportável, e as alucinações também.

“Pelas quatro, cinco da manhã, as paredes da sala onde eu estava começavam a estreitar-se, a estreitar-se. No chão da sala, aparecia uma poça de água que ia subindo até chegar à minha cintura e onde via girinos a nadar", conta Carlos Coutinho, que, enquanto membro da Ação Revolucionária Armada praticamente desde a sua criação, foi responsável por alguns dos atentados que mais desgastaram e expuseram o Estado Novo.

A dada altura, começaram a pôr-lhe drogas diluídas na água que, num primeiro momento, o faziam sentir-se "eufórico", mas depois causavam-lhe sensações opostas. “Ficava eufórico, mas, ao fim de 10, 15 minutos, andava à procura de um sítio qualquer onde pudesse suicidar-me.”


Carlos Coutinho esteve preso em Caxias entre fevereiro de 1973 e abril de 1974.
Matilde Fieschi

Luísa Sales, psiquiatra e antiga coordenadora do Observatório do Trauma da Universidade de Coimbra, com larga experiência clínica no acompanhamento de casos de stress pós-traumático, explica que experiências deste tipo podem levar não só ao desenvolvimento de um trauma, como de patologias como os comportamentos aditivos, depressão, ansiedade e psicose.

Também as famílias das pessoas traumatizadas podem desenvolver traumas ou outros problemas, como acabou por acontecer no contexto da Guerra Colonial. “Foram feitos estudos que mostram que filhos de antigos combatentes têm um risco maior de desenvolver stress pós-traumático. Também as mulheres sofreram e sofrem, pois foram as cuidadoras das patologias destes homens. São traumas que afetam uma geração inteira.”


Luísa Sales, psiquiatra e antiga coordenadora do Observatório do Trauma da Universidade de Coimbra.
Matilde Fieschi

Arlindo recebe apoio psicológico há 25 anos e faz terapia de grupo com outros ex-combatentes. Ainda assim, sente que o trauma deixado pela Guerra Colonial não tem cura. “A psiquiatria dá-nos armas para nos podermos defender das memórias. Ajuda-nos a criar gavetas onde a gente as guarda bem guardadinhas. Esquecemos momentaneamente até que um dia há uma situação qualquer, que pode não ter nada a ver, mas que é uma faísca e a gaveta abre-se de repente e está ali tudo outra vez.”

Também Carlos Coutinho não acredita numa cura. “O trauma é uma ferida incurável. Nunca chega a cicatrizar e dói, dói sempre.”

“Que voz é esta?” é o nome do podcast do Expresso dedicado à saúde mental. Todas as semanas, as jornalistas Joana Pereira Bastos e Helena Bento dão voz a quem vive com ansiedade, depressão, fobia ou outros problemas de saúde mental, ouvindo igualmente os mais reputados especialistas nestas áreas. Sem estigma nem rodeios, fala-se de doenças e sintomas, tratamentos e terapias, mas também de prevenção e das melhores estratégias para promover o bem-estar psicológico. O podcast conta com o apoio científico de José Miguel Caldas de Almeida, psiquiatra e ex-coordenador nacional para a saúde mental.

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