50 anos do 25 de Abril

"Liberdade a sério": histórias de Abril

O que mudou na "paz, pão, habitação, saúde e educação" depois do 25 de Abril? Hoje reformados, uma professora, um general, uma psicóloga, um operário e um médico recordam como viveram os primeiros anos de profissão durante a Revolução.

"Liberdade a sério": histórias de Abril
Arquivo Municipal da Marinha Grande

Nas primeiras horas da manhã do dia 25 de abril de 1974, todos os profissionais de socorro em Lisboa foram chamados para responder a uma situação volátil em que tudo podia acontecer.

O médico João Camilo tinha 26 anos e, “como era habitual (era jovem)”, fora para a cama tarde. Acordou às 6h00 da manhã com o telefonema de um amigo.

“Liga o rádio porque estão a dar notícias de que há um golpe militar, estão as tropas na rua. E estão a dizer às pessoas para ficarem em casa e aos médicos para se dirigirem aos hospitais”, ouviu do outro lado da linha.

O rádio “ficou ligado o resto do dia”, mas para a família. João Camilo correu para o Hospital São José, em Lisboa, onde trabalhava, e ao chegar à enfermaria deparou-se com um cenário insólito.

“Havia uma situação engraçadíssima, porque não havia doentes deitados. Os doentes estavam todos de pé, encostados às janelas. As varandas davam para o Martim Moniz e todos estavam à janela - tinham passado as dores.”


“Aquilo era um espetáculo, havia centenas ou talvez alguns milhares de pessoas que desfilavam pelo Martim Moniz, para cima e para baixo.” João Camilo pediu ao chefe de serviço para se juntar a elas: “Hoje já fiz aqui a minha parte, tenho de ir para a rua."

Acabou por ficar “praticamente todo o dia na rua, até de madrugada.”

Para quem não viveu no Portugal do fascismo, João Camilo deixa o diagnóstico: “era um país a preto e branco, com uns tons de cinzento. E de repente, as pessoas sentiram que podia ser um país a cores”.

Um sindicato controlado pela PIDE

Sebastião Mota começou a trabalhar na indústria da Marinha Grande aos 11 anos, em 1955, e fez parte da fundação do sindicato do sector ainda antes do 25 Abril.

Todas as reuniões eram controladas pela PIDE, conta. E quando foram escolhidos os nomes para integrar a direção do sindicato, “todos foram cortados” porque professavam “ideias contrárias aos ideais do Estado”.

Os trabalhadores decidem então organizar a greve corajosa que em março de 1974 paralisou a indústria vidreira.

A sala de reuniões do sindicato não tinha espaço para todos os trabalhadores, mas estava tão cheia que a polícia de Leiria foi chamada para controlar a situação. “Quem tivesse a biqueira do sapato fora do arremate da porta levava com o bengalim.”

Sebastião Mota era delegado sindical na empresa onde trabalhava, mas tinha de atuar “na clandestinidade”. Uma “praga” que o 25 de Abril fez “desaparecer”, exclama.

Aprender a respeitar o professor

Para Vitória Silva, pelo menos uma coisa não mudou desde que dava aulas na escola básica do Lavradio, no concelho do Barreiro: o professor deve ser uma figura de autoridade.

“Continuo a achar que o professor dentro da sala é uma autoridade. E fora da sala é um modelo para os alunos. Porque os alunos, para crescerem, têm de ter referências, e as referências vão buscá-las aos professores e aos pais.”

A professora reformada recorda o caso de um aluno do segundo ano que recusou tirar o chapéu dentro da sala de aula. Repreendeu-o, tentou explicar-lhe porque devia tirar o chapéu, mas em vez de obedecer o rapaz subiu para a cadeira.

"Eu cheguei ao pé dele, agarrei-o, sentei-o, e disse-lhe ‘na sala de aula quem manda é a professora. Se a professora diz que não está sol, tu tiras o chapéu’. E ele não faz mais nada, sai porta fora”.

Quando o aluno regressou à sala trazia a mãe, mas a professora tinha uma lição a dar a ambos: “O seu filho foi só educado por si até agora. Aqui, dentro da escola, é educado por mim também.”

Anos depois, Vitória Silva reencontrou o antigo aluno. “Abraçou me e disse-me ‘professora, eu se hoje sou engenheiro, devo-o à senhora’”. Depois de tirar o chapéu, claro.

Jovens fartos da guerra e um país onde faz falta “tudo”

O tenente-general Manuel Franco Charais desempenhou missões em Angola e Moçambique. Meio século depois, recorda como cresceu o descontentamento dos militares na Guerra de Ultramar.

“Os jovens capitães aperceberam-se, ao fim de 13 anos de guerra, que o poder político - que era uma ditadura - não tinha solução, ou não queria adotar uma solução política para a guerra em África.”

Todos estranhavam o “arrastar” do conflito, especialmente quando a Organização da Unidade Africana e a ONU “permanentemente estavam a condenar Portugal por não dar autodeterminação e independência às suas colónias”.

Por outro lado, a população portuguesa não era enviada para Angola e Moçambique - "territórios tão grandes” - apesar de viver com “carências tremendas”, aponta o tenente-general.

"Há aqui uma mistura: os capitães apercebem-se que a população portuguesa não está a ganhar nada com a guerra, mas precisa ser desenvolvida, precisa de criar os seus filhos dentro do território onde vive.”

Nascido no Porto em 1931, Manuel Franco Charais foi militar de Abril e colaborou na redação do programa do Movimento das Forças Armadas (MFA). Entre 1974 e 1982, integrou a Comissão Coordenadora do MFA, o Conselho de Estado, o Conselho de Revolução e comandou a Região Militar do Centro.

Tudo fazia falta em Portugal, lembra. “Precisam de novos serviços de saúde, precisam de mais escolas, precisam de melhores salários, precisam, no fundo, de tudo. E a guerra está a prejudicar a população.”

Realojar quem vivia em barracas

Isabel Cordovil fez parte do movimento estudantil que ajudou as vítimas das cheias na zona de Lisboa, em novembro de 1967, a tragédia que Salazar escondeu.

Desapareceram 20 mil casas e terão morrido 700 pessoas. A censura não deixou saber quantas foram as vítimas ao certo, mas a catástrofe expôs as condições miseráveis em que viviam muitos portugueses nas zonas periféricas das cidades.

Depois do 25 de Abril, foi criado o Serviço de Apoio Ambulatório Local (SAAL), um programa de realojamento para o qual Isabel Cordovil foi contratada em setembro de 1974.

"Eu era psicóloga, tinha 22 anos, não era nem arquiteto nem engenheiro, e era rapariga” - algo que seria impossível antes do PREC, conta.

O programa dura até 1976, mas as casas são entregues para além desse ano. Uma “política pública bem-sucedida”, acredita Isabel Cordovil, porque as pessoas “acreditaram” que era possível.

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