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A conta do Presidente foi hackeada. Por azar, não ficou tudo em ordem

Artigo de opinião de Débora Henriques

A conta do Presidente foi hackeada. Por azar, não ficou tudo em ordem
JORGE GUERRERO

Há sempre qualquer coisa que soa a falso quando tentamos a proeza de corrigir um erro sem querer assumir que errámos. Não vale a pena, não funciona. Só torna mais evidente o erro e mais raquítica a tentativa de o emendar.

Ainda no domingo passado, limpámos as remelas à pressa para ter a certeza de que estávamos a ler bem aquelas duas pequenas frases de Iker Casillas que gritavam numa rede social. Um desabafo em forma de tweet, que tinha tanto de inesperado como de poderoso. “Sou gay. Espero que me respeitem”. E, de repente, parecia fácil e natural abrir uma porta que tantos no mundo do futebol e fora dele se sentem ainda obrigados a trancar por dentro.

Duas horas depois, na mesma conta, eram disparadas outras duas frases, igualmente curtas, que rasgavam as anteriores e as apagavam para sempre. Como se nunca tivessem existido. “Conta hackeada. Por sorte, tudo em ordem.” Nunca ninguém poderá provar que sim ou que não. Que foi uma rápida e suspeita invasão cirúrgica ou uma piada desgraçada para responder aos que lhe inventam romances sucessivos. Mas soará sempre a tentativa de corrigir um erro que não se quis assumir. E soa a falso.

A meio da tarde desta terça-feira, o Presidente da República não precisou de ter conta para tweetar com estrondo. A comissão que investiga casos de abusos sexuais na Igreja Católica tinha acabado de revelar um total de 424 queixas. “Este número surpreende-o?”, pergunta o jornalista. “Não, não me surpreende”, responde o Presidente num registo ligeiro em que intercala expressões como “´tá a ver, o problema é o seguinte”, com remates como “não há limite de tempo para estas queixas, algumas vêm de pessoas com 90 anos”.

Mas, se tivesse sido, de facto, um tweet, a frase que gritaria na rede presidencial e nos obrigaria a esfregar bem os olhos para acreditar no que estávamos a ler, seria esta: “haver 400 casos não me parece particularmente elevado”. Como assim? Não podemos ter lido bem. Não podemos ter ouvido bem. Está tudo errado aqui.

Crente de que o que acabara de dizer era perfeitamente normal e não uma daquelas frases que um Presidente da República nunca poderia ter dito, Marcelo Rebelo de Sousa ainda elaborou sobre o incomparável universo de centenas de milhões de jovens que contactaram com a Igreja Católica nos últimos 70 anos, para mostrar o quão pequena era a amostra das queixas.

Ainda que fosse apenas um, não seria já demasiado, senhor Presidente? A resposta era tão evidente, que instantes depois já o Twitter se atropelava numa avalancha de críticas e de exigências de um pedido de desculpas do Presidente.

Marcelo Rebelo de Sousa já não tinha como apagar o que tinha dito. Era preciso emendar o erro. Como? Talvez com uma nota na página da Presidência da República, à hora dos jornais das televisões. Era o Presidente a retratar-se? Não era bem isso. A nota de Belém servia para esclarecer - ou não - que o número de queixas de abusos sexuais “não parece particularmente elevado face à provável triste realidade”. Não era um pedido de desculpa. E o acrescento com novo contexto também não resolvia o problema. Não serão sempre demasiados casos, senhor Presidente?

A esta hora já Marcelo Rebelo de Sousa tinha a perfeita noção do impacto do que verbalizou sem medir as palavras. Já passava das nove da noite, quando decidiu falar em direto à RTP. Agora sim para se retratar? Nada disso. O Presidente queria repetir que o número de casos “é curto para as expectativas e para o universo”, porque tem a convicção de que “há muitos mais”.

“Poderá a fé católica do Presidente estar a influenciar o mandato?”, pergunta e bem o jornalista Pedro Zambujo, da RTP. A resposta chega em forma de pergunta devolvida: “acha que a fé influencia quando o Presidente pega numa denúncia em relação ao mais importante dos bispos portugueses e assina ele próprio para que o Chefe da Casa Civil transmita imediatamente ao Ministério Público?”

Resposta errada, senhor Presidente. Sabendo que logo depois informou José Ornelas da investigação em curso, talvez esse não seja o melhor argumento de defesa para o Presidente católico, com evidente dificuldade em olhar para o que se passa na Igreja com olhos de Chefe do Estado laico. O mesmo Presidente católico que há uns meses não se inibiu de dizer, refugiado num “a título pessoal”, que não acreditava que D. José Policarpo e D. Manuel Clemente tivessem ocultado a prática de abusos sexuais.

Há convicções que o crente não pode nem deve partilhar com o Presidente. Marcelo Rebelo de Sousa fê-lo mais uma vez, sem dar pelo conflito de interesses e quando se apercebeu tentou corrigir a incompatibilidade sem querer assumi-la. À SIC, horas mais tarde, diria que foi “mal interpretado” e que continuava sem perceber porquê.

Se o Presidente tivesse conta no Twitter, hoje também teria sido hackeada. Por azar, não ficou tudo em ordem. Nem houve pedido de desculpa aos seguidores.

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