Durante seis meses, de março a setembro de 2021, cinquenta unidades móveis do projeto "Gulbenkian, onde é preciso" percorreram milhares de quilómetros para apoiar a vacinação contra a covid-19. Mais de três mil profissionais de saúde, de todo o país, foram a casa de pessoas acamadas, sem mobilidade ou isoladas em zonas mais remotas. Graças a este projeto, mais de cinquenta mil pessoas foram vacinadas. Mais de 12 mil doses foram administradas ao domicílio.
Durante quase um mês, andámos na estrada com estas equipas e testemunhámos o esforço das montanhas que se movem para chegar a quem precisa.
O retrato que encontrámos é o de um país envelhecido, limitado pelos obstáculos do isolamento e muitas vezes dependente da ajuda do setor social e da rede de cuidados de saúde primários. Quase sempre os cuidadores são mulheres e, muitas vezes, a solidão pesa mais do que qualquer outro obstáculo. Esta história não é sobre vacinas. É uma história sobre pessoas. Neste caso particular, sobre mulheres. Como a Isabel, a Ana, a Silvina, a Maria, a Dolores, a Margarida e a Ana Paula.
A ISABEL, QUE NUNCA QUIS SER "PASSARINHO DE GAIOLA"
Na aldeia de S. Martinho do Souto, a cerca de 5 km de Lamego, a família da Isabel é conhecida como a "família das forças armadas". Isabel tem 55 anos e é uma mulher de armas. Perdeu o marido há três anos e, com ele, muita da alegria que tinha de viver. Foi com ele que aprendeu a soldar e a fazer trabalhos de serralharia, que ainda hoje a ajudam a resolver avarias domésticas, mas é à agricultura que se dedica diariamente.
Vendia fruta no mercado de Lalim, até a mãe ficar acamada. Deixou de trabalhar para cuidar de Alzira, de 92 anos, a quem a demência dá períodos intermitentes de lucidez. Se não tivessem ido vacinar a mãe a casa, Isabel não tinha como a transportar até ao centro de vacinação mais próximo. Vive isolada, mas diz que isso a faz sentir livre. E isso é tudo, para quem nunca foi nem nunca quis ser "passarinho de gaiola".
A EMÍLIA DO SOBE E DESCE
Emilía já perdeu a conta à quantidade de vezes que, todos os dias, sobe e desce as escadas que ligam a casa onde vive, no primeiro andar, ao café que tem há 16 anos, no piso térreo. É cuidadora, a tempo inteiro, da mãe, de 92 anos, diagnosticada com Alzheimer e diabetes e completamente dependente. Mas também é ela que gere o café da aldeia, frequentado pela população de Quintãs de Baixo, no concelho de Lamego.
Toda a gente a conhece e sabe que quando quer ir ao café, tem de tocar à campainha de casa, para Emília descer. Se não fossem vacinar a mãe a casa, confessa que não a vacinaria, porque não teria forma de a levar onde quer que fosse. Emília tem, na verdade, dois trabalhos a tempo inteiro.
A SILVINA, O SOBREIRO QUE PASSA OS DIAS A FUGIR DA SOMBRA
O sobreiro tem folha persistente. Nasce e cresce em solos pouco férteis. Não tolera invernos frios. Podia ser a história da Silvina. Aos 90 anos, é o sobreiro da família. Tem sete filhos, 16 netos, 18 bisnetos e um trineto, contas por alto.
Passa os dias a fugir da sombra e a arrastar o banco que lhe marca as horas até o sol se pôr. Repete ditados e cantilenas populares, com uma alegria quase juvenil. Frequentava o centro de dia mais perto de Boticos, no concelho de Santiago do Cacém, que está fechado desde o início da pandemia. Maria, que trabalhava num lar de idosos, teve de deixar o emprego para ficar em casa a cuidar da mãe.
Em muitos momentos, a memória da Silvina tem buracos. Às vezes, está no passado, outras vezes, esquece-se dele. A filha dedica as 24 horas do dia a tentar mantê-la no presente.
A DOLORES E O SOSSEGO DO MONTE
A Dolores tem 87 anos e uma força improvável para um corpo tão franzino. Vive num monte alentejano, perto de Porto Covo, onde divide os dias entre o trabalho no campo e os cuidados ao marido, que ficou acamado nos últimos anos.
Conta com o apoio das auxiliares de um centro de dia e da enfermeira da extensão de saúde de Porto Covo, que todas as semanas vão ao monte ajudá-a a tratar de António. Gosta do silêncio e do sossego, mas confessa que tem saudades de ir passear a Sines. Dolores não sai do monte há quase cinco anos.
A GUIDA E A ANA PAULA, QUE SÓ SABEM FAZER POR AMOR
Margarida e Ana Paula são auxiliares do ABCD de S. Romão, em Coimbra, um centro de convívio dedicado a doentes com Alzheimer. Desde o início da pandemia, que deixaram de receber doentes e passaram a fazer domicílios.
No dia em que acompanhámos a equipa de saúde de Coimbra no processo de vacinação contra a covid-19, cruzámo-nos com elas num dos domicílios e não pudemos ficar indiferentes à forma genuína como cuidavam dos idosos que foram vacinados. Ambas de lágrima fácil e de coração na boca, garantem que só consegue fazer este trabalho, quem o fizer por amor. Elas são mais uma montanha que se move para chegar a quem não tem forma de ir.
A ANA, QUE SÓ QUERIA UMA ESTRADA
A Ana nunca saiu de Moledo, uma pequena aldeia a menos de 10 km de Lamego. Tem 58 anos e nunca saiu de casa dos pais, para poder cuidar deles. É cuidadora informal do pai, a tempo inteiro, ainda que desconheça a existência de um estatuto. Todas as conversas vão dar a um pedido repetido: uma estrada. Ana só quer ter uma estrada que chegue à porta de casa e que lhe permita sair com o pai, na cadeira de rodas.
O caminho longo, íngreme e irregular, que liga a casa à estrada principal, impede-os de sairem de casa sem ajuda. Sempre que precisa de o fazer, Ana tem de pedir transporte aos bombeiros, que por terem muitas solicitações, nem sempre estão disponíveis.
Às vezes, sai-lhe um desabafo triste, de quem está conformada com a vida que tem, mas que ao mesmo tempo gostaria de ter experimentado outra. "Agora, também já nada me interessa", foi a frase com que fiquei.