O Jorge Palma faz hoje 70 anos. Ele não sabe, mas foi ele que me ensinou a deixar o tempo decidir. A tirar a mão do queixo e a não pensar mais nisso. A aceitar que a cicatriz sobrevive sempre à mais perfeita ligadura. E que a gente vai continuar. Sempre.
Há uns meses sonhei com o Jorge Palma. No meu sono profundo, cruzei-me com ele na rua e, como quem pergunta as horas, disse-lhe que a letra da minha vida era feita de músicas dele. Ele riu-se, encolheu os ombros e continuou a andar. Fiquei tão irritada que fui atrás dele e quando o puxei pelo braço, ele respondeu “devias ter dito isso ontem”. Acordei assarapantada, sem perceber o porquê daquele sonho e sobretudo daquela resposta.
Quando vi que o Jorge Palma faz hoje 70 anos, lembrei-me imediatamente deste sonho estranho. E voltei a pendurar-me no Trapézio. Caímos mil vezes, seguidas de abraços, canta ele, com aquele ar displicente de quem não quer saber se aquele verso alguma vez salvou alguém.
Lembro-me de ouvir a voz do Palma, desde que me conheço como gente. A primeira vez foi em vinil. Era muito miúda, mas lembro-me que ele aparecia na capa, de mãos nos bolsos, em frente a uma janela vermelha. O disco ora tocava sem soluços, ora ficava preso numa palavra riscada que martelava até alguém levantar a agulha. Acontecia sempre quando ele chegava ao refrão da “Canção de Lisboa”, o que tornava o “mamã, mamã” ainda mais repetitivo.
E tinha a “Estrela do Mar”, que muitos anos depois ofereci a uma grande amiga, de cara sardenta que enche o olhar, como se a letra fosse minha e a pudesse embrulhar como um presente.
Mais tarde, lembro-me de querer muito que aquele “acorda, menina linda” fosse para mim. Depois, já queria ser “Essa miúda” que é um exagero.
Já sofria de amores, quando descobri que “o meu amor existe” e tem trinta mil cavalos a galopar no peito.
Com o meu pai, descobri que “a gente vai continuar”, sempre, mesmo quando a estrada se perde e quem a segue já nem se encontra.
O Palma não sabe, mas eu cresci com a música dele a pôr-me o braço no ombro.
A “Só” ensinou-me a aceitar que não faz mal ter duas almas em guerra.
Com o Lobo Malvado, aprendi que a cicatriz sobrevive sempre à mais perfeita ligadura.
Com o Jeremias, invejei o poeta, foragido por amor ao que é belo, que desarranja o pesadelo para lá dos limites legais.
Tantas vezes procurei a paz do optimista céptico.
Outras tantas, dirigi-me ao lado errado da noite, com o caderno dos desabafos ensopado.
Perdi-me nos passos inseguros do pavilhão da aurora.
Quis viver no bairro feito a lápis de cor, onde o tempo morre devagar.
Segui os “Passos em Volta” e percebi que é só abrir a janela e voar.
Foi o Palma que me mostrou que há quem viva escondido a vida inteira.
Que me explicou que não faz sentido inverter a ordem dos factores e pôr os números à frente dos amores.
Que me avisou que quando se perde o balanço, nem pensar em descanso, só temos de o encontrar.
O Jorge Palma é uma daquelas pessoas com ar de quem não tem muito mais a perder, que nos rouba o coração sem dar por isso. Fala-nos sempre da festa do sol e do prazer e suspeito que ele tenha aceitado sempre o convite.
Já ouvi todos os discos do Palma. Fui a dezenas de concertos. São poucas as letras dele que não sei de cor.
Porque ele não sabe, mas anda há anos a cantar a minha vida. As nossas.
Uma vez, em trabalho, dois minutos antes de lhe fazer uma brevíssima entrevista em direto, ganhei coragem e de forma um pouco atabalhoada, disse-lhe que era o meu músico do coração e que ninguém escrevia como ele. Agradeceu, meio sem jeito. A humildade dos grandes é uma coisa extraordinária, que me emociona sempre.
Imperdoável é o que não vivi, canta ele.
Eu diria que imperdoável é o que ele ainda não fez. Porque enquanto ele não o escrever e não o cantar, temos de esperar para o viver.
No meu sonho, ele dizia que eu devia ter dito isto ontem. Não queria deixar de o fazer.
Parabéns, Palma. E desculpa o atraso.