Saúde Mental

Os “esqueletos” começam a sair do armário

Quem me quis ouvir sabe que disse, de forma convicta, que a covid-19, mais do que sintomas ligeiros ou alguns graves, iria trazer muitas outras consequências. Para muitos chegou a altura de escolher se quer ser peão ou fazer xeque-mate no xadrez que é a vida.

Os “esqueletos” começam a sair do armário

Ainda bem que fevereiro só teve 28 dias. O mês mais curto do ano, mas verdadeiramente intenso. Não sei se foi o universo, o destino, mas algo quis que fosse ouvinte, confidente, de testemunhos sobre a disfuncionalidade vivida em relações amorosas, uniões de facto, namoros e/ou vivências matrimonias.

Não deixou de ser irónico, o facto destas histórias terem surgido no mês de fevereiro, mês em que se assinala o dia de São Valentim e em que supostamente o amor anda no ar… pelo que ouvi até anda, mas talvez não na direção em que devia andar.

Foi um mês também marcado na comunicação social, ao trazer à ribalta o tema da violência doméstica, de género, como lhe queiram chamar, e se é ou não é violência. O que posso retirar das histórias que ouvi, é que nestas a violência se encontra bem presente, no entanto de uma forma tão “requintada” que se torna assustadora. Primeiro, umas das coisas que mais me chocou, foi as histórias serem de pessoas que estão perto de mim, e que até à sua confidência pensei que viviam uma história de amor.

Não posso ficar indiferente, porque quem me quis ouvir sabe que disse, de forma convicta, que a COVID, mais do que sintomas ligeiros e graves, iria trazer muitas outras consequências. O facto destas histórias terem surgido quando as medidas de desconfinamento estão a ser levantadas, também me fez pensar que os “esqueletos” começam a sair do armário.

Mas afinal o que ouvi neste mês de fevereiro? As narrativas são de mulheres na faixa etária dos 40-50 anos, todas com filhos, quase todos criados, por isso o ninho começa a ficar vazio. O vazio do ninho torna-se em simultâneo em vazio existencial e quando estas mulheres acordam, chegam à constatação que não são felizes, que têm 40 e poucos anos e uma mão cheia de “nada”. O que mais me incomodou nestes relatos foi o facto de se viver infeliz, em sofrimento, e nalguns casos anestesiadas durante anos muitas vezes sob o efeito de medicamentos.

Nem todas as mulheres traíram os companheiros, umas fizeram-no e adoraram, outras não o fizeram porque não conseguiram, não por eles, mas por elas, uma vez que depois não conseguiriam viver com o sentimento de traição. Quando elas falam deles, supostamente amores da vida, denota-se que não existe qualquer sentimento de afeto, falam de forma enojada, o que também me fez arrepiar, o não ficar nada.

Existem denominadores comuns a estas histórias, todas queriam ter filhos, esse era o objetivo de vida, mais que encontrar o príncipe encantado. Na sua maioria, são mulheres de classe média, média alta, embora os rendimentos financeiros provenham na sua maior parte dos cônjuges. Esta situação de dependência financeira é a primeira “arma” com a qual se sentem ameaçadas. Algumas trabalham, outras não mas algumas estão dispostas a reaver as suas vidas profissionais, procurando alguma fuga para a sua independência.

O dinheiro (ou a falta dele) é sentido como um dos principais pilares destas relações, ainda mais quando as contas bancárias são controladas pelo marido/companheiro. “Queres um vestido? Sou eu que decido”. O controlo vai até às aplicações GPS nos telemóveis das mulheres, para que saibam sempre onde andam. Com tanta manipulação, controlo, a pergunta óbvia é, como é que se aguenta? E para quê? E as respostas a estas perguntas são também elas surpreendentes: “se o deixo ele diz que me mata”; “não consigo manter o meu estilo de vida se o deixar”; “se o deixo faz-me a vida num inferno”; “irá fazer tudo para me tirar os filhos”…

Tudo isto me fez questionar a saúde mental destas mulheres, destes homens e a sanidade das relações que vivem. Não há relações perfeitas, em que o amor e a paixão estejam presentes pela eternidade, mas existem pilares mínimos que levam as relações por adiante, a confiança, lealdade, companheirismo, sinceridade, entre tantos outros sentimentos positivos que se podem construir numa relação. Ao contrário, nestas relações disfuncionais, algumas de décadas, são relatados sentimentos de tristeza, apatia, amargura, sofrimento e nojo.

Várias perguntas se impõem. Como eram estas mulheres há 20 anos? Porquê todo este sacrifício? Amou-se e deixou-se de amar? A forma como se penteia, se veste, fala e tosse sempre foi a mesma, o que mudou? Até que ponto as mulheres fomentam este tipo de comportamento e relação? Será que estas podem ser vistas e pensadas somente enquanto vítimas?

Como em quase tudo, cada situação é uma situação e “quem está no convento é que sabe o que lá vai dentro”. Sem dúvida que os comportamentos a que estas mulheres são sujeitas são considerados de grande violência psicológica e manipulativa e arrasam com a saúde mental, contudo a sua forma de agir perante a situação é que poderá mudar. O papel que desempenhou até agora poderá manter-se como peão ou fazer xeque-mate.

Algumas das mulheres com quem falei, a maioria, infelizmente, mantém-se e tenciona manter-se nas relações disfuncionais conscientes que vivem. O manter o estilo de vida, o poder construir a piscina no próximo ano, o ter de pensar em desculpas para que o sexo seja cada vez menos, parecem ser justificações fáceis de arranjar. Quanto às racionalizações, às desculpas que terão de encontrar para se justificarem a elas próprias, por optarem pela infelicidade eterna, isso considero um verdadeiro desafio. Com certeza que os níveis de autoestima, amor próprio, autocuidado, insegurança, devem estar abaixo do limiar, após tantos anos de invisibilidade, há coisas que se deixam ver, de todo.

Destas histórias, apenas uma mulher traiu, decidiu procurar trabalho, começar a fazer o seu “pé-de-meia” e a lutar por si. Para além de ter sentido de novo prazer no sexo, passou também a sentir prazer em fazer coisas para ela. Coisas que deixou de fazer há anos, que achava que já não gostava e outras que nunca tinha feito, mas que agora, diz: “estou pronta para tudo. Estive adormecida tempo de mais, quase que não me reconheço, mas sei que havia outra pessoa há 25 anos”.

Quando leio artigos com títulos “estar só é diferente de sentir solidão” ou “estar só por opção pode ser bom” parece-me sempre uma tentativa de justificar ao mundo que há pessoas que não têm relações, mas mesmo assim são felizes. Depois de ouvir este mês de fevereiro, questiono-me se uma piscina, um vestido, uma mão cheia de nada, compensam ser-se livre e poder escolher o caminho que se quer fazer sem GPS. É importante escolher: quero ser peão ou fazer xeque-mate no xadrez que é a vida?

Últimas notícias
Mais Vistos
Mais Vistos do