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E quem nos livra da austeridão?

O meu excel interno, tão rigoroso e fiável quanto possível, avisa-me que se não travarmos a tempo, podemos acabar na bancarrota emocional. As nossas contas públicas, mas sobretudo as íntimas, atingiram um défice de amor sem precedentes. Uma dívida de afeto que não sei se algum dia conseguiremos pagar. Mas calma. Ouvi falar de um fundo de recuperação. E tenho um plano de resgate.

E quem nos livra da austeridão?

Nos últimos tempos, o modo aleatório do Spotify é das poucas coisas que traz surpresas aos meus dias repetidos. Hoje, apareceu o Jorge Palma. Vinha a cantar o Bairro do Amor. E quando chegou à parte do “epá, deixa-me abrir contigo, desabafar contigo, falar-te da minha solidão”, estremeci.

Um verso de uma canção que já ouvi milhares de vezes tocou-me num nervo sensível. Recuso-me a confirmar que o episódio tenha envolvido lágrimas, porque ainda estou a aprender a aceitar este ser lamechas e hiper-sensível que recentemente se instalou no meu corpo. Dei por mim a responder ao Palma: epá, eu também preciso disso. E acendemos os dois um cigarro.

Aqui chegados, fica o aviso de que isto é só um desabafo sem filtro, que se prepara para sair de modo tão aleatório e imprevisível como a playlist que hoje me calhou e que misturou o Palma com o Paul Simon, o Tom Jobim e a Joni Mitchell. É um pouco isto que se passa na minha cabeça, por estes dias.

O meu excel interno, tão rigoroso e fiável quanto possível, avisa-me que se não travarmos a tempo, podemos acabar na bancarrota emocional. As nossas contas públicas, mas sobretudo as íntimas, atingiram um défice de amor sem precedentes. Uma dívida de afeto que não sei se algum dia conseguiremos pagar.

Falam-nos de números e da ameaça da austeridade. Mas confesso que neste momento estou ainda mais preocupada com a austeridão que já se instalou dentro de nós.

Falam-nos da urgência de reabrir a economia. Mas estou ainda mais preocupada com a “reabertura da vida”. Roubei a expressão ao Germano Oliveira, que ainda ontem, no Expresso, falava de sonhos do futuro, feitos de menos pessoas. E citava um trabalho da Helena Bento, que ouviu de psicólogos o aviso de que "o medo e a ansiedade foram úteis para cumprir o isolamento e vão ser bloqueadores na hora de voltar a sair." Pois vão. A Pandemia Interna Bruta tomou conta de nós.

O enorme aumento de medo imposto fez disparar a carga de ansiedade. O Imposto de Vida Adiada atingiu níveis impensáveis. O Imposto sobre o Rendimento da Saudade já bateu todos os recordes. Nem vale a pena tentarem comparações com o período homólogo.

Claramente, já ando a pensar nisto há alguns dias. Tenho superávit de tempo, que me fez chegar à conclusão que quero muito que isto acabe. E que não faço ideia do que farei quando acabar. Quero muito sair. Mas já não sei como se faz. Quero muito ir e tenho medo de não ficar.

Estava quase conformada com a ideia de que nada voltaria a ser igual. Que nunca mais seriamos os mesmos, depois de descobrirmos que as nossas certezas são tão frágeis.

Mas calhou-me na quarentena e na vida, um parceiro disposto a fazer uma emissão conjunta de dívida. Que me financia a sanidade com subsídios de amor a fundo perdido. E que me lembra que com mais ou menos zeros, há sempre um fundo de recuperação a que podemos recorrer.

Vamos a isso. Agora que já deprimimos juntos, vamos ao plano de resgate.

O lay-off das nossas vidas não vai durar para sempre. Enquanto durar, preparamos a estratégia para uma saída limpa. Mas aviso já: vamos ter de pedir empréstimos. De paciência e de amor aos mais próximos. Aqueles que nunca nos falham e que nuncam cobram juros. Mas, desta vez, vamos fazer questão de pagar.

Vamos acertar contas com beijos e abraços, jantares e brindes, conversa fiada e cantorias, danças e piadas secas. Mal vão caber, todos apinhados em colunas de excel a transbordar. Vamos precisar de mais folhas. Esta linha de crédito é para sempre.

Quem nos livra da austeridão? O amor. Da austeridade, já não posso prometer.

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