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A princípio é simples, anda-se sozinho

Foi preciso chegarmos aqui, todos nós, tão virtualmente sobranceiros e fartos de proximidade e de gente, para percebermos que afinal precisamos tanto de estar perto. E que afinal é mais difícil do que parece. Andar sozinho. E vem-nos à memória uma frase batida.

A princípio é simples, anda-se sozinho


Hoje de manhã, estava a tomar o pequeno-almoço à janela, quando vi uma vizinha do prédio em frente, com os seus setenta e tal anos, a atravessar a rua, sozinha, com um saco de compras, num passo tão lento que ainda tive tempo de beber um café antes de ela meter a chave na porta. Nesse momento, chega outra vizinha do mesmo prédio que lhe dá uma descompostura, porque saiu de casa e não devia ter saído. "Porque é que não me chamou?"

Do nada, veio-me à cabeça a canção do Sérgio Godinho. Aquela em que se dá a volta ao medo e a volta ao mundo.

Um dia acordámos e nada estava no sítio onde tinhamos deixado tudo. De um dia para o outro, deixámos de beber as certezas num copo de vinho. De repente, perdemos o toque. E os abraços. De repente, dizem-nos que isto é uma guerra. E quando lá chegamos para confirmar, ainda incrédulos, vemos que está aberta. Somos bombardeados com estados de alerta. Depois de calamidade. Agora de emergência. Não cheguem perto. Fiquem em casa. Usem máscaras. Desinfetem-se se se descuidarem e apertarem a mão de alguém. Saiam à rua só se tiver mesmo de ser. Por favor, aceitem que a liberdade murchou.

Vêm cansaços e o corpo fraqueja. Só até percebermos que da escolha se faz um desafio. E bebe-se o alento num copo sem fundo.

De repente, temos tempo. Sabemos o nome da vizinha de cima e oferecemo-nos para lhe ir fazer as compras. Vamos à janela aplaudir quem merece. Damos por nós a pegar no telefone para saber de um amigo com quem não falamos há que tempos. De repente, as redes sociais, que quase sempre nos subtraem, também servem para somar.

Só na última hora, na minha timeline do facebook, li longos desabafos de amigos que ainda estão a aprender a lidar com tudo isto. Alguns partilharam músicas e poemas que contam por eles o que lhes vai lá dentro. Li a história de um pai, que está há quatro dias em casa com as duas filhas, em isolamento, e que lhes sugeriu que fossem à janela dizer bom dia a quem passa. Logo a seguir, alguém partilhou um concerto de violinos que as vizinhas da frente deram na varanda. Juntei-me a um grupo de amigas, em que uma atira num post o primeiro verso de uma canção e as outras vão atrás como se cantassem à desgarrada, num coro em diferido. Começou com os Beatles e quando demos conta já estavamos no Toy. Ri-me sozinha com isso, num dia em que não me apetecia muito rir.

Ninguém quer estar sozinho nisto. De repente, estamos sozinhos, todos juntos.

Façam-me um grande favor. Ponham o Sérgio Godinho a tocar aí em casa. Para vos lembrar que o tempo há-de fazer cinza da brasa. Havemos de brindar a estes novos amores, com o vinho da casa! Hoje é o primeiro dia.

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