Decisores políticos, técnicos, cientistas, profissionais de saúde, cidadãos. Em circunstâncias normais, o nível de dificuldade dependeria apenas da habilidade do executante e da segurança do espaço. Mas o exercício de equilibrismo torna-se bem mais difícil quando é um vírus invisível a ditar as regras.
Esta Grande Reportagem pretende ser uma reflexão sobre algumas das decisões políticas e de saúde pública tomadas no arame. Sobre as lições que aprendemos ao longo de dez meses de pandemia. Sobre o que correu bem, o que correu mal e sobre os erros que podemos evitar daqui para a frente.
Escolhemos cinco grande temas em que podemos fazer melhor. É um exercício subjetivo? É certamente. Há seguramente muitos outros em que podemos e devemos fazer diferente. Estas foram as grandes lições apontadas por todas as pessoas que ouvimos nesta reportagem, em dezenas de conversas que tivemos ao longo dos últimos meses.
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A Resposta
Num cenário de absoluta incerteza, em que cada decisão é um risco, não decidir é um risco ainda maior.
No início de janeiro, ninguém previa que um vírus desconhecido, até então confinado à China, pudesse vir a provocar os estragos que mais tarde se confirmaram.
Em Portugal, o Hospital de São João foi um exemplo de antecipação. Considerado um dos grandes responsáveis por aquilo a que alguns chegaram a chamar “o milagre português”, no início da pandemia, o São João ativou o gabinete de crise e deu início às primeiras medidas logo no início de janeiro, numa altura em que a OMS ainda desvalorizava um vírus desconhecido e a Direção Geral da Saúde ainda falava de uma “fraquíssima possibilidade” dele se transmitir de pessoa para a pessoa e poder chegar a Portugal.
O São João pôs em prática medidas que contrariavam as orientações dadas na altura pelas autoridades de saúde. Ainda em março, determinou o uso obrigatório de máscara para todas as pessoas que entrassem no hospital, impôs testes pré-internamento e enviou para casa todos os doentes covid que não precisavam de internamento. Medidas que só mais tarde viriam a constar das normas orientadoras definidas pela DGS para todos os hospitais do país.
Também no planeamento e na rapidez da resposta, o São João foi um exemplo. Foi pela primeira vez ao mercado logo no início de janeiro, para reforçar o stock de equipamentos de proteção individual. Mesmo assim, enfrentou grandes dificuldades num mercado extremamente agressivo, sem capacidade de resposta e com equipamentos a preços dez vezes superiores. A primeira grande compra do Estado português, sinalizada no portal dos contratos públicos, só aconteceu dois meses depois.
A Comunicação
Num cenário de risco, a comunicação pode e deve ser a rede de segurança, mas nem sempre isso aconteceu. Um chat de whatsapp foi a forma encontrada pelos administradores hospitalares de todo o país para comunicarem entre si, partilharem informações e pedidos de ajuda. Uma comunicação em rede, social, que procurou suprimir dificuldades de comunicação com as autoridades de saúde.
“Normas e circulares não bastam para a informação passar” foi uma das frases que mais ouvimos. Administradores hospitalares lamentam que muitas vezes a informação lhes tenha chegado através da comunicação social. Relatam que tinham de assistir às conferências de imprensa diárias da Diretora Geral da Saúde e da Ministra da Saúde, em direto nas televisões, para saberem qual seria o passo seguinte no combate à pandemia.
Em Portugal, a opção foi colocar Graça Freitas e Marta Temido na linha da frente da comunicação. Uma opção questionada por quem entende que se confundiu comunicação técnica e política e que esta pandemia foi gerida não como uma doença, mas como um dossiê político.
Teria sido de todo o interesse ter nesta reportagem o testemunho da Ministra da Saúde e da Diretora-Geral da Saúde, mas apesar da insistência da SIC, com dezenas de pedidos feitos entre julho e setembro, nem Graça Freitas nem Marta Temido quiseram aceitar o convite da SIC para fazer uma reflexão sobre o que o país viveu nos últimos meses e sobre as lições que tirou deste período. Também aqui, a comunicação não foi possível.
Os Lares
O Instituto da Segurança Social garante ter estado presente nos mais de mil lares onde houve casos isolados ou surtos de covid-19. A reportagem da SIC esteve num lar onde isso não aconteceu: o lar da Santa Casa da Misericórida de Aveiro, em Oliveirinha, que registou o número mais pesado de mortes de todos os lares nacionais.
Neste lar, morreram 24 idosos com covid-19. 90 utentes foram infetados. Números que não justificaram uma visita da segurança social.
Ouvido nesta reportagem, o Presidente do Instituto da Segurança Social diz que isso não aconteceu porque “a instituição não mostrou abertura” e porque “a Saúde tinha a situação controlada”.
Este lar conseguiu dar resposta a um surto grave com a ajuda do Hospital de Aveiro e do departamento de saúde local com que manteve contacto permanente. O único contacto que recebeu por parte da Segurança Social “foi para pedir números”. Repito. 90 infetados. 24 mortes. Entraram para o excel das estatísticas nacionais que mostram que entre março e setembro, o novo coronavírus conseguiu entrar em 1089 lares. Mais de 3200 idosos foram infetados. 721 morreram.
Se o pior da pandemia nos lares já passou? O Presidente do Instituto de Segurança Social acredita que o país está hoje mais bem preparado, mas diz também que não tem uma bola de cristal que lhe permita prever o impacto de uma nova vaga.
A Estratégia
Ainda se lembra do Conselho Nacional de Saúde Pública?
A 11 de março, o órgão consultivo do Governo reuniu-se para analisar o eventual encerramento das escolas. Na altura, o primeiro-ministro garantia que a decisão política seguiria as recomendações dos técnicos. No dia seguinte, António Costa decidiu exatamente o contrário do que os técnicos recomendaram e anunciou o fechou das escolas.
Foi a partir daí que se deu o estranho caso do desaparecimento do Conselho Nacional de Saúde Pública. Um órgão consultivo criado por uma lei de 2009 que determina que o Conselho tem de ser ouvido especificamente em caso de pandemia. A lei determina também a audição do Conselho Nacional de Saúde Pública para a fundamentação do estado de emergência. Esta lei ficou na gaveta.
Os especialistas estranham a opção do Governo, defendem a urgência de reforçar o aconselhamento científico e apontam a ausência de uma estratégia de saúde pública.
Alertam, desde logo, que as epidemias têm sempre de ser encaradas como um fenómeno local. E que só um mapeamento do país, por níveis de risco, permitiria uma resposta rápida e eficaz.
Os Outros
“Senti uma revolta muito grande, porque só havia covid, não havia mais nada”. Esta frase do Ricardo Sant’Ana, cuja história contamos nesta Grande Reportagem, traduz bem o que sentiram milhares de doentes que ficaram em suspenso desde março, para que o Serviço Nacional de Saúde pudesse ter capacidade de se concentrar na resposta à covid-19.
Só entre os meses de março e junho e em comparação com o mesmo período do ano passado, os hospitais realizaram menos dois milhões e meio de consultas e menos 240 mil cirurgias.
Números que contam histórias como a do Ricardo, que teve a infelicidade de ficar doente dias antes de rebentar a pandemia.
No final de fevereiro, diagnosticaram-lhe uma doença neurológica, mas a suspensão da atividade programada no SNS deixou-o sem acompanhamento médico nos meses seguintes. Ficou em casa, sem conseguir marcar nova consulta e sem poder fazer fisitoterapia. Deixou de conseguir andar e agravou substancialmente o estado de saúde. Depois de meses de angústia, o Ricardo está agora finalmente a ser acompanhado e a lutar para recuperar o tempo perdido.
Depois de meses em suspenso, o Ricardo está a aprender a equilibrar-se novamente. A dar um passo de cada vez. Como todos nós. Mesmo sem saber quantos passos ainda faltam para chegar ao fim de uma corda demasiado comprida.