Grande Reportagem SIC

"Crianças muito pequenas que passem muito tempo a jogar videojogos podem atrasar as competências de leitura ou de escrita"

No âmbito da Grande Reportagem “Agarrados ao Ecrã”, o neurocientista Nuno Sousa aborda, em entrevista alargada, o impacto do uso dos dispositivos digitais na saúde e no desenvolvimento.

"Crianças muito pequenas que passem muito tempo a jogar videojogos podem atrasar as competências de leitura ou de escrita"
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Os telemóveis são, hoje em dia, quase um prolongamento do corpo. As novas gerações crescem cercadas por ecrãs e soam constantes alarmes sobre os riscos desta exposição. O tempo que as crianças dedicam aos dispositivos digitais contraria, de forma clara, as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS).

De acordo com a OMS, até aos 2 anos não deve haver qualquer exposição das crianças aos ecrãs e entre os 2 e os 4 anos, o tempo máximo recomendado é de uma hora por dia.

Paralelamente, os conteúdos aos quais os mais novos estão expostos são, muitas vezes, desadequados ao seu nível de desenvolvimento.

Em todo o mundo, pediatras, psicólogos e cientistas debruçam-se sobre o tema e alertam que as crianças estão mais agitadas e têm mais dificuldade em estarem atentas. Assinalam ainda que os problemas relacionados com a linguagem e a aprendizagem são cada vez mais comuns, e ainda que aumentaram os casos de obesidade, ansiedade e falta de empatia entre os mais novos, referindo que estes aspetos estão relacionados com o excesso de exposição aos ecrãs.

Várias escolas já proibiram o uso do telemóvel nos recreios, para promover o convívio entre os alunos e mitigar problemas como o consumo de conteúdos impróprios para a idade dos alunos ou a captação e divulgação de imagens através das redes sociais sem a devida autorização.

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Por outro lado, ouvem-se argumentos sobre os benefícios da utilização da tecnologia, nomeadamente como ferramenta de ensino.

Pedimos ao médico e neurocientista Nuno Sousa que nos ajudasse a perceber o impacto que o uso dos dispositivos digitais tem na saúde e no desenvolvimento.

O investigador começa por nos apresentar uma imagem do cérebro, para mostrar a razão porque, sobretudo as crianças, têm tanta dificuldade em largar os ecrãs. "O cérebro vai maturando a ritmos diferentes e as áreas do cérebro que se desenvolvem até mais tarde são aquelas que permitem fazer juízos e interpretar consequências, só estando verdadeiramente amadurecidas no final da adolescência, pelo que é natural que crianças de mais tenra idade tenham alguma limitação nesses processos de regulação", explica o neurocientista.

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“Aqui vemos o mapa de desenvolvimento do cérebro e esta é a linha da idade. Como se pode ver, nas fases mais precoces da vida, há muitas áreas a verde e a amarelo e estas são as que demoram mais tempo a maturar. E está aqui localizado o córtex pré-frontal, que é fundamental para as questões da regulação, do comportamento. Portanto, faz muito sentido que haja um reforço externo por parte de pais e educadores.”

O investigador refere que as crianças encontram menor recompensa na leitura de um livro do que na visualização de um filme, e que "hoje em dia, já não pode ser um filme de 90 minutos, já tem de ser um filme muito curto para que a recompensa seja imediata."

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"O cérebro, até por uma questão de sobrevivência, é um órgão que fica viciado na recompensa, e quanto mais imediata for a recompensa, melhor é para o cérebro, porque é uma associação muito mais forte. E, portanto, isto é muito verdade nas crianças: são muito mais sensíveis à recompensa mais imediata, ao vídeo mais curto. Aprender, memorizar requer atenção. Crianças muito pequenas que passem muito tempo a jogar videojogos, podem atrasar as suas competências de leitura ou de escrita. Atenção que insisto que é com a exposição excessiva."

O neurocientista alerta que "se o uso dos smartphones e dos videojogos por parte das crianças for excessivo e acontecer em fases muito precoces, há alguma evidência que aponta no sentido de haver um aumento de casos de défice de atenção." Por outro lado, esclarece que se essa exposição aos ecrãs acontecer em fases mais avançadas da adolescência este efeito já não se verifica de uma forma tão acentuada. A idade é, por isso, uma variável essencial quando se procura definir as regras de utilização dos dispositivos digitais.

O neurocientista explica ainda que as empresas que estão envolvidas no desenvolvimento dos videojogo "foram buscar muito saber à área das neurociências cognitivas" e que devemos estar despertos para este facto.

Carol Yepes

A perda de socialização é outro dos possíveis efeitos nefastos do excesso de exposição aos ecrãs. Nuno Sousa chama a atenção para o "prejuízo do desenvolvimento das competências sociais" sendo que este risco "é particularmente preocupante quanto mais tenra foi a idade."

Apesar destes alertas, Nuno Sousa não defende a proibição do uso dos dispositivos digitais até ao final da adolescência, quando cérebro já está mais amadurecido.

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"Não me parece interessante de forma nenhuma essa proibição de uma exposição a algo durante um período de tempo tão alargado. E digo isto porquê? Porque, por um lado, ao proibir, aumenta o desejo de usar, neste caso, aquele jogo digital. Por outro lado, porque há de facto ganhos que são relevantes e todos nós beneficiamos de alguns desses ganhos e, portanto, se essa exposição for demasiado tarde, a capacidade que nós temos de potenciar esse ganho fica também comprometida. Vou usar uma analogia: era a mesma coisa que proibir uma criança de ler até à fase final da adolescência. Isso acarretaria um prejuízo das competências que estão associadas à leitura e que são múltiplas e variadas, portanto, também não faria sentido."

O neurocientista lembra os receios que se levantaram quando as máquinas calculadoras começaram a ser utilizadas, semelhantes aos que surgem agora associados à inteligência artificial.

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"Eu recordaria as discussões que houve quando se introduziram as máquinas calculadoras em que muita gente dizia que ia ser o fim do cálculo. E não só não foi como permite que cheguemos mais longe e que, de facto, uma maneira geral, se consigam cálculos mais complexos. É a mesma questão com a inteligência artificial e o seu uso. O que importa é o uso regular, o uso equilibrado e que permita que haja desenvolvimento daquilo que pode ser benéfico, sem prejuízo da exposição a outras formas de estar em sociedade, que resultam em grandes benefícios para o desenvolvimento da pessoa e do seu cérebro."

Como em todas as atividades humanas, há ganhos e perdas, diz Nuno Sousa, "e é do bom senso e do compromisso que se conseguem os melhores resultados". E dá como exemplo o GPS:

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" Hoje em dia, as pessoas dizem-me frequentemente que perderam capacidades de orientação espacial, nomeadamente quando se deslocam dentro de um automóvel, porque estão altamente dependentes do uso do GPS. É evidente que é verdade, porque aquele aparelho é tão fantástico do ponto de vista da precisão, que resulta num ganho para as pessoas que o usam, porque tipicamente chegam de uma forma mais correta, mais precisa, ao destino que pretendem.

Perderam essa capacidade? Perderam porventura alguma capacidade de exercitar isso, é verdade, aqueles que aprenderam de outra forma. Portanto, a aprendizagem da leitura de um mapa continua a ser uma competência que me parece muito relevante, mas não quer dizer que eles não possam regressar a níveis de competência elevados e, sobretudo, que não entendam o ganho que existe no uso do GPS, porque agora, primeiro, são mais precisos no encontro do destino e depois não têm de focar a atenção do seu cérebro para aquela tarefa. E ao libertarem o cérebro para outras tarefas, têm maior tempo cerebral para socializarem, para ouvirem a sua música ou estarem a ouvir o seu podcast quando estão a conduzir ou simplesmente estarem em pensamento livre nas coisas mais relevantes da vida."

O médico faz questão de realçar os ganhos que se conseguem quando os dispositivos digitais são usados de forma equilibrada.

"Sabe-se que as crianças ganham competências em alguns jogos, sobretudo jogos com valor. Por exemplo, aumentam a sua capacidade de atenção seletiva para determinadas tarefas." E destaca também as mais-valias ao nível da destreza manual no caso de jogos em que há envolvência de comandos, referindo que permitem "uma curva de aprendizagem mais rápida em áreas que hoje em dia são muito interessantes para a atividade humana e nas quais se destacam, por exemplo, as novas técnicas cirúrgicas que estão muito dependentes do controlo de comandos."

O neurocientista é, assim, da opinião de que se deve procurar encontrar um compromisso saudável que permita que as crianças beneficiem do contacto com estas novas tecnologias porque, conclui: "se a exposição aos ecrãs for excessiva, pode ter efeitos nefastos significativos", mas se o uso destas novas tecnologias digitais acontecer “num contexto equilibrado, seguramente há ganhos.”

mrs
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