50 anos do 25 de Abril

Ensaio para o 25 de Abril? O golpe (pouco conhecido) das Caldas da Rainha que abriu portas à revolução

Enquanto as memórias do Golpe das Caldas da Rainha, um ensaio para o 25 de Abril, ressoam nas ruas da cidade, dois jovens estudantes mergulham nas páginas da História. Benjamin e Leonor, de 14 anos, acompanham o professor, Rui Correia, numa visita à Escola de Sargentos do Exército, antigo Regimento número 5, onde soldados marcharam outrora rumo a um destino incerto. Juntos, desvendam as peripécias de um passado tumultuoso. Uma conversa entre diferentes gerações para perceber o que fica do 25 de Abril.
Professor Rui Correia com os alunos Benjamin Anjos e Leonor Groba, ambos de 14 anos, na Escola de Sargentos do Exército, nas Caldas da Rainha.
Professor Rui Correia com os alunos Benjamin Anjos e Leonor Groba, ambos de 14 anos, na Escola de Sargentos do Exército, nas Caldas da Rainha.
Ana Luísa Monteiro / SIC

16 de março de 1974. Os soldados do então Regimento de Infantaria n.º 5, das Caldas da Rainha, foram “chamados a tomar uma decisão”. À sua frente, tinham um dilema: ora optavam por seguir com a vida normal ou escolhiam enfrentar o Estado Novo e avançar com um golpe. Perante o descontentamento popular que vinha a escalar, em grande parte devido à guerra colonial, escolheram a segunda opção. Assim começou uma história, ainda pouco conhecida, que se revelaria um prólogo para os acontecimentos que culminaram na Revolução dos Cravos.

Nas Caldas da Rainha, a coragem dos soldados do Regimento de Infantaria n.º 5 ainda hoje ecoa pela cidade: na agora Escola de Sargentos do Exército fala-se daqueles que desobedeceram - ato incomum no Exército -, nas ruas veem-se monumentos, e quem lá vive sabe bem o que significou aquele momento de rebelião. É o caso de Rui Correia, professor da Escola Básica de Santo Onofre, que já escreveu sobre o “golpe falhado que não falhou” no livro “República Reprimida” e que faz questão de contar este capítulo do passado aos seus alunos.

É, precisamente, a história do conhecido Golpe das Caldas que o professor relata a Benjamin Anjos e Leonor Groba, de 14 anos, na Praça da Formatura, da Escola de Sargentos do Exército, de onde partiram os soldados até Lisboa, numa tentativa de levarem a cabo um golpe militar. Quando lá chegaram, perceberam que as outras unidades militares não tinham aderido ao golpe e que estavam, por isso, sozinhos. Sem apoio militar ou civil, os soldados voltaram ao ponto de partida, onde foram obrigados a render-se perante as forças do regime, que cercaram o local. Acabaram por ser todos presos.

“Eles saem daqui e vão todos convencidos de que Vendas Novas, Mafra e Lamego viriam apoiá-los. Saem daqui, vão em direção a Lisboa. São eles contra o país inteiro. E depois informam-nos que estão sozinhos. (…) Eles sabiam que a sua vida estava arruinada”, conta Rui Correia.

Não há um número exato conhecido de soldados envolvidos no Golpe das Caldas e as estimativas variam conforme as fontes. Geralmente, é considerado que centenas de soldados pertencentes a unidades militares estacionadas nas Caldas da Rainha e arredores, incluindo tropas do Exército, Marinha e Força Aérea, bem como alguns elementos da Guarda Nacional Republicana, estiveram envolvidos na operação.

Curioso sobre o que aconteceu aos militares presos no Golpe das Caldas e não só, Benjamin Anjos questiona o professor sobre qual era o destino dos presos políticos levados para prisões como Caxias, Aljube e, nalguns casos, para fora de Portugal, para campos de concentração como o Tarrafal. Neste caso, os golpistas das Caldas acabaram presos em várias instalações prisionais da altura e lá permaneceram bem menos tempo do que imaginavam, porque faltavam apenas 41 dias para o 25 de Abril. Mas muitos outros presos políticos não tiveram igual sorte, tendo ficado alguns deles detidos durante décadas.

“Havia mais do que apenas a necessidade de punir a pessoa por aquilo que ela fez. Havia mais uma outra preocupação que era de tentar saber se essa pessoa pode levar a outras pessoas que também estão a fazer a mesma coisa, ou seja, tentar fazer com que o prisioneiro possa ser um delator”, explica Rui Correia a Benjamin, referindo que, muitas vezes, os prisioneiros eram torturados e submetidos a “sessões de pancadaria”.

Que Portugal era esse, antes do 25 de Abril?

Benjamin e Leonor vão ouvindo o professor de História, numa espécie de aula ao ar livre. Os dois alunos não sabem o que é viver em tempos de ditadura e usam os ensinamentos e experiência de Rui Correia para fazerem uma viagem pelo tempo que Portugal era um “país fechado”, em que não se podia dizer algo “que contrariasse o discurso típico tradicional”. Aos olhos de quem estava fora do país, Portugal era um lugar perfeito, organizado e pacífico. Mas aos poucos, a repressão vivida por milhões de portugueses, começou a ser exposta. Um desses momentos aconteceu quando Salazar foi capa da revista Time, a 22 de julho de 1946.

“Nessa capa da Time apareceu Salazar com uma maçã cortada ao meio. Por fora, estava maravilhosa, luzidia, fresquíssima e depois, por dentro, está toda corroída. O texto que estava dentro, escrito por um italiano dizia assim: Portugal é esta imagem de perfeição e de que tudo corre bem, mas na verdade há ali problemas gravíssimos”, relata o professor.

Time publica reportagem sobre Salazar e o Estado Novo a 22 de julho de 1946.

“Portugal de Salazar, o decano dos ditadores” era o título da publicação que acabou por ser proibida em Portugal, e que descrevia a vida quotidiana em Portugal, destacando a pobreza, as condições precárias de saúde e educação, a falta de liberdade de expressão e as limitações impostas pela ditadura de Salazar.

Foi mais uma entre as centenas de revistas, livros e músicas que eram habitualmente censuradas pelo Estado Novo. Rui Correia lembra que as canções, por exemplo, apontavam para a conceção do cidadão ideal que vivia e morria sem levantar ondas.

Filho de uma mãe “profundamente conservadora” e de um pai “profundamente liberal”, o professor conta: “Eu lembro-me que o meu pai dizia que, às vezes, tinha receio de ter algumas conversas com a minha mãe, não fosse ela - repara bem - por amor, denunciar o meu pai dizendo que ele ouve uma estações de rádio, umas coisas que não devia, e lia uns livros que também não devia”.

E acrescenta:

“Porque é que as pessoas acusavam outras? Não era porque estivessem contra elas, mas porque sentiam que essa era uma maneira de participar em construir a tal estabilidade e a tal tranquilidade social”, aponta.

O que fica do 25 de Abril para as gerações mais novas?

Da Escola de Sargentos do Exército passamos para o monumento evocativo do 16 de março de 1974, de José Santa-Bárbara, que fica a poucos metros de distância. Este é mais um sinal da importância da data para a população das Caldas da Rainha. Segundo Rui Correia, o conjunto escultórico espelha “grande parte da História de Portugal”.

“A primeira parte muito severa, muito rude, muito grosseira, um bloco negro, que depois evolui para umas partes mais ou menos enferrujadas. Depois temos uma parte inoxidável que, de alguma maneira, representa esse momento de preparação para o 25 de Abril. No topo, temos essa explosão cinética de alegria”, afirma.

É nesse local, aos pés da escultura, que Leonor e Benjamin falam sobre o 25 de Abril, que consideram ter sido um “evento histórico” que “nunca pode ser esquecido”.

“Agora podemos andar na rua e expor a nossa opinião sem sermos punidos por isso. É realmente fantástico o progresso que nós fizemos até agora”, refere Leonor.

Todavia, a liberdade não é vista pelos dois jovens como garantida. Embora considerem que as eleições livres asseguram, de alguma forma, o regime democrático, não afastam totalmente a possibilidade de Portugal regressar a uma ditadura.

“Eu acredito que as pessoas que governam o país não fariam isso novamente, porque isso traz bastantes prejuízos para o povo”, diz Leonor.

E Benjamin complementa:

“Acho que poderá acontecer outra vez no futuro. Neste momento, não. A ditadura ainda está muito presente.”, afirma.

“É isto que um professor de História quer que haja", remata Rui Correia, satisfeito com a sensibilidade dos alunos a discutirem temas como o 25 de Abril.

Rui Correia é professor de História, conferencista e autor de numerosos estudos de História, Património e Educação. Foi gestor educativo, external expert em Educação para a Comissão Europeia, vereador da Câmara Municipal das Caldas da Rainha e vencedor do Global Teacher Prize Portugal 2019.

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