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A tradição manchada de sangue

Na madrugada de sábado, um jovem de 16 anos morreu, após ter sido colhido por um touro, durante uma tradicional largada da Feira Regional de Maio, na Moita.

A tradição manchada de sangue

O Município deu conta que “na sequência do trágico incidente desta madrugada, do qual resultou a morte de um jovem, a Câmara Municipal da Moita lamenta o sucedido e apresenta as mais sentidas condolências à família, estando disponível para prestar todo o apoio necessário”, garantindo que “está a acompanhar as averiguações às causas deste incidente, em estreita colaboração com as autoridades competentes”.

A morte de uma pessoa é sempre um facto a lamentar, existindo ainda maior comoção quando se trata de alguém mais jovem. Todavia, a dor do momento deve permitir uma reflexão cuidada, ética e fundamentada sobre a ocorrência em apreço, de modo a evitarmos desfechos semelhantes.

Desde junho de 2016, que a Ordem dos Psicólogos Portugueses desenvolveu um contributo técnico sobre o impacto psicológico da exposição das crianças aos eventos tauromáquicos.

Serviram de mote a esse contributo as questões levantadas relativamente ao impacto da exposição das crianças àquelas que podem ser consideradas formas de violência, nomeadamente a violência animal e, mais especificamente, as consequências da exposição e da participação das crianças em atividades e eventos tauromáquicos, como manifestação de entretenimento.

Ainda que constituam práticas culturalmente contextualizadas nalguns locais do país, os eventos tauromáquicos surgem também como um caso de violência sobre os animais, ou pelo menos do desrespeito dos seus direitos em nome de uma qualquer tradição e/ou ao uso de um animal para gáudio dos outros.

Quando as crianças assistem a tais práticas podem interpretá-las como forma de violência, ainda que limitada a um determinado espaço (arena, circuito da largada), ou encararem como natural o recurso a um outro, mesmo que animal, numa lógica desigual (uma vez que é perpetrada pelos homens em animais coagidos a estarem presentes) para ser judiado a favor do gozo de alguns. Assim, estes comportamentos agressivos recebem uma legitimação social forte, transmitindo às crianças que o que está a acontecer é apropriado e tolerável. Por conseguinte, repetível ou percetível de se estender a outras circunstâncias.

Um estudo realizado há vários anos procurou apurar as atitudes das crianças com menos de 14 anos relativamente às touradas. Mais de metade das crianças que participaram na investigação relataram não gostar de assistir a touradas e dois terços consideraram as touradas violentas.

Os dados existentes vão no sentido de que as crianças experienciam consequências negativas pela observação de violência contra os animais, enquanto desrespeito do animal, com efeitos semelhantes à observação de violência contra pessoas. Apresentam maior probabilidade de desenvolver problemas comportamentais, dificuldades académicas, comportamento delinquente e correm maior risco de abusar substâncias.

Dos vários resultados adversos da exposição das crianças à crueldade para com animais refira-se a dessensibilização e os efeitos nefastos na capacidade empática da criança; o prejuízo no sentido de segurança e confiança na capacidade dos adultos conferirem proteção numa situação de perigo; a aceitação de violência nas relações interpessoais; a transmissão da mensagem de que se pode procurar uma sensação positiva através de infligir sofrimento; a imitação de comportamentos abusivos como modelo de funcionamento.

A dessensibilização face ao sofrimento ou instrumentalização fria do animal para gozo de terceiros, ao habituar a criança a situações de violência torna-a mais passiva e menos hábil a reagir perante atos violentos, opondo-se diretamente ao desenvolvimento da empatia na infância. É importante assinalar que a observação de cenas violentas aumenta a tolerância a demonstrações de agressão e ensina as crianças a aumentar os seus níveis daquilo que é agressividade aceitável. Para que não existam dúvidas, a dessensibilização à violência conduz a que crianças esperem mais tempo para chamar um adulto para intervir numa altercação física entre pares.

Justificar os eventos tauromáquicos como um acontecimento festivo, agressivo ou neutro tem resultados claramente distintos. Em concreto, as crianças que eram expostas ao conteúdo da justificação festiva, centrados nos elementos descritivos do evento e ignorando as suas consequências negativas, obtiveram pontuações superiores em testes de agressão e ansiedade. Por isso, as mensagens verbais que acompanham a observação do acontecimento refletem-se na agressividade, ansiedade e impacto emocional nas crianças.

O contributo técnico da Ordem dos Psicólogos recorda ainda que os seres humanos revelam uma forma muito poderosa de aprendizagem, nomeadamente a imitação. Desta forma, a capacidade de aprender comportamentos através da observação das ações dos outros é fundamental na infância e adolescência, para o melhor e para o pior.

É também de relembrar que, no dia 14 de outubro de 2021, o Conselho de Ministros aprovou o Decreto-lei que altera a classificação etária para assistir a espetáculos tauromáquicos, fixando-a nos maiores de 16 anos, à semelhança do que acontece para o acesso e exercício das atividades de artista tauromáquico e de auxiliar de espetáculo tauromáquico. Esta medida surgiu na sequência do relatório do Comité dos Direitos da Criança das Nações Unidas, de 27 de setembro de 2019, que defende o aumento da idade mínima para assistir a espetáculos tauromáquicos em Portugal.

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