De Cape Town ao Cairo

Sonho interrompido : o fim de uma viagem que gostava de ter cumprido como sonhei

Ao longo dos últimos quatro meses, partilhei convosco as minhas aventuras, desafios e, sobretudo, o muito que aprendi nesta viagem de bicicleta elétrica pelo continente africano. Cada pedalada desta travessia foi sempre uma experiência única, mas o sonho de levar esta aventura até ao Cairo, no Egipto, infelizmente, não se realizará.

Sonho interrompido : o fim de uma viagem que gostava de ter cumprido como sonhei
DANIEL RODRIGUES

Quando entrei na Tanzânia, também conhecida por país do Mambo pelo uso desta palavra como cumprimento generalizado entre todos, não antevi aquele que seria o mês mais difícil de toda a minha viagem em África.

Apesar das belezas das savanas, nos seus mais diversos tons de verde, e da simpatia e prontidão daquelas gentes, foi um tormento atravessar o país. Os meus pensamentos apontavam constantemente para o futuro quase imediato que seria atravessar o Quénia de seguida, e depois entrar na Etiópia e no Sudão. Sabia que estes dois países seriam muito difíceis de cruzar e, eventualmente, poderiam colocar um ponto final na minha viagem.

DANIEL RODRIGUES

Ansiedade ofuscou parte da viagem

A busca de soluções para conseguir entrar nestes países ocupou a minha cabeça, de tal forma, que fico agora com a ideia de que atravessei a Tanzânia sem usufruir da paisagem que me foi dada.

Lembro-me apenas da tranquilidade e do cuidado das pessoas, dos tons, os cheiros e as cores, mas muitos dos detalhes ficaram ofuscados pela ansiedade dos meus pensamentos que me causaram um sofrimento por antecipação perfeitamente desnecessário.

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DANIEL RODRIGUES

De súbito, durante a travessia da Tanzânia, a irritabilidade foi aumentando, provavelmente, também, pelo cansaço acumulado que se juntou aos péssimos pensamentos que me povoavam a cabeça numa mistura explosiva de impaciência que fazia todas as qualidades daquele país e daquelas pessoas serem, de repente, incomodativas.

Mesmo assim, aproveitando a vantagem de atravessar o país numa bicicleta elétrica e conseguindo observar muitas das mais de 120 tribos e grupos étnicos que a Tanzânia tem, tive a oportunidade, nos últimos dias, naquele país, de conhecer melhor o seu povo e uma das tribos mais conhecidas naquela região: a tribo Massai. Foi a ver como viviam em comunidade que me voltei a motivar e a arranjar forças para continuar.

Apesar de já conhecer muitas das tradições e costumes do povo daquela tribo, aqueles momentos foram fundamentais e mostraram-me outras formas de viver com tranquilidade e com o tempo que nos parece cada vez mais fugaz.

Assaltado numa das ruas caóticas de Nairobi

À chegada ao Quénia fotografei os projetos da EDP de acesso à energia limpa em escolas. E logo após a minha chegada a Nairobi fui assaltado em andamento numa das ruas caóticas desta capital africana. Por puxão, levaram-me o telemóvel o que me fez passar três dias seguidos a caminhar para uma esquadra da polícia que, como seria de esperar, nada resolveu. O tratamento do caso, pela polícia, seria digno de um filme.

Aproveitei aqueles dias em Nairobi para encetar contactos e estudar uma alternativa para chegar ao Egito evitando o Sudão, que continua, infelizmente, em guerra civil e com as fronteiras fechadas.

Considerei a Etiópia, como alternativa, mas aquele país tem sofrido, também, nos últimos meses, vários ataques de guerrilhas nas estradas, e mesmo que eu arriscasse essa estratégia, colocando-me em perigo, teria de pagar alguns milhares de euros para me deixarem passar com a bicicleta na fronteira. Essa alternativa levar-me-ia a arriscar pedalar diariamente pelas colinas verdes na esperança de que nenhum ataque acontecesse pelo caminho.

DANIEL RODRIGUES

O espírito de exploração e a busca por um mundo melhor persistem

Se, eventualmente, chegasse a Djibouti atravessaria o Mar Vermelho de barco até ao Iémen, outro país instável e pouco convidativo a travessias de bicicleta elétrica, para chegar à fronteira com a Arábia Saudita em direção a Jeddah para apanhar outro barco para o Egito, onde poderia, ou não, ser barrado à entrada por causa da bicicleta ou outra qualquer razão do momento.

Não havia solução. Descobri isso nos dias que passei em Nairobi à espera que alguma luz se fizesse para eu continuar a viagem. A vontade de terminar o que me propus fazer era imensa, mas muito menor que a vontade de viver e poder contar esta “meia” aventura na primeira pessoa.

Apesar da frustração e tristeza, a essência desta viagem permanece. O espírito de exploração e a busca por um mundo melhor persistem. Vou continuar a contar todas as histórias que vivi ao longo dos últimos quatro meses, relembrar todas as pessoas fantásticas que tive a oportunidade de conhecer e, principalmente, continuar a alertar para as alterações climáticas e lutar por um mundo melhor.

Neste fim inesperado, olho para trás e sinto-me feliz, realizado e transformado, não apenas por ter embarcado num projeto incrível, nunca antes feito, mas porque durante este caminho aprendi a olhar para a sustentabilidade de uma forma mais real e prática.

Esta crónica marca o fim de uma viagem que gostava de ter cumprido como a sonhei. Mas como nem sempre os sonhos se realizam ficam as lembranças deste percurso de mais de seis mil quilómetros, de Cape Town a Nairobi numa bicicleta elétrica, a fim de promover a luta por um mundo melhor.

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