De Cape Town ao Cairo

A travessia da Zâmbia ensinou-me que a vida não se resume à fotografia ou às redes sociais

É crucial cultivar a convivência e libertarmo-nos dos dispositivos eletrónicos. Parar, conversar, conhecer e aprender com novas culturas, sermos mais humanos. Foi exatamente isso que fiz na Zâmbia.

A travessia da Zâmbia ensinou-me que a vida não se resume à fotografia ou às redes sociais
DANIEL RODRIGUES

Como era de esperar, esta minha viagem pelo continente africano, apesar de ter o objetivo de sensibilizar as pessoas para a sustentabilidade, também me vai transformando obrigando-me à reflexão que tantas vezes não tive. Esta experiência tem mudado a minha perceção do mundo e, de forma particular, das pessoas. Na Zâmbia, essa transformação tornou-se ainda mais profunda.

“HOW ARE YOU?” Esta simples pergunta, ecoando por todo o lado, tem sido revitalizante nas últimas duas semanas. Das vozes alegres das crianças aos timbres mais apagados dos mais velhos, essa expressão de afeto tem soado como a banda sonora desta parte da travessia. E como tem sido revitalizante.

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Depois de deixar para trás um país marcado pela hostilidade, entrar na Zâmbia e ser saudado diariamente com um genuíno “How are you?”, sempre acompanhado por sorrisos espontâneos, era algo que eu estava profundamente a precisar. Às vezes, ressoava à distância e eu mal conseguia identificar a origem da voz. As crianças, quando me viam, ficavam tão radiantes que repetiam incansavelmente aquela frase até eu desaparecer no horizonte. Que bom seria se todos conseguíssemos ser assim, o mundo, certamente, seria um lugar mais belo, como é a Zâmbia.

Um nascer do sol mágico

Após deixar o Botswana, decidi fazer um desvio e acrescentar mais um país à lista da minha jornada: o Zimbabué. Era impensável não visitar as majestosas cascatas Vitoria Falls, estando tão próximo. As fotografias que fui tirando têm de servir para descrever a grandeza e o poder daquele lugar na Terra, já que por palavras seria impossível. A força da água, a grandiosidade da paisagem e a sua beleza, fazem-nos perceber quão pequenos somos.

DANIEL RODRIGUES

Ao longo dos anos, tive o privilégio de testemunhar muitos amanheceres em diferentes cantos do mundo e posso afirmar que o nascer do sol, nas Vitoria Falls, foi o mais espetacular que já presenciei. Foi mágico. A natureza em todo o seu esplendor, despertando em mim um desejo ainda mais forte de fazer a minha parte no combate às alterações climáticas e de promover mudanças na sociedade para que todos, juntos, possamos proteger o nosso planeta.

“Porque estás a tirar fotos? Vais lucrar com essas fotos?”

A minha passagem pela Zâmbia operou a transformação que eu estava a necessitar. Sentia-me desanimado, os dias tornavam-se mais difíceis e a simpatia das pessoas teve o poder de me “renovar”. Esse gesto simples manifestou-se imediatamente assim que entrei no país, atravessando a Victoria Bridge, com as cascatas à minha esquerda, desaparecendo no meu retrovisor. Os vendedores ambulantes, de bicicleta, e os habitantes comuns que utilizam este meio de transporte para se deslocarem surgiram, saudando-me com um sorriso.

DANIEL RODRIGUES

Mas também senti que estava a entrar numa África mais profunda, naquela que me emociona e pela qual me apaixonei desde a minha primeira viagem em 2012. Mais população, mais aldeias, mais cores em cada cidade, mais música, por isso, mais vida. As pessoas são incrivelmente simpáticas e acolhedoras. Mas quando levanto a máquina fotográfica tudo muda. Como fotógrafo, tenho sentido mais dificuldade em tirar fotos na rua desde que as redes sociais ganharam mais presença e impacto na vida das pessoas. Isso é compreensível.

Hoje, mais do que nunca, as pessoas são expostas globalmente sem qualquer consentimento. Na Zâmbia, as pessoas estão cientes disso e questionam-me frequentemente quando levanto a minha câmara para retratar um momento do quotidiano ou uma pessoa: “Porque estás a tirar fotos? Vais lucrar com essas fotos?”

DANIEL RODRIGUES

Esta questão, complexa e sensível, fez-me repensar a minha abordagem à fotografia e até a minha ética. Como fotógrafo, especialmente quando se trata de fotografias de rua e de viagens, aprecio capturar momentos espontâneos, quando as pessoas não estão a posar para a câmara. Isso, naturalmente, acontece nos mais diversos locais e situações, e não pedir permissão às pessoas, faz parte de um processo que se quer natural e espontâneo. Mas será a abordagem mais adequada? Alguns argumentarão que não, outros que sim.

O tema é divergente. Mas eu, enquanto fotógrafo, acredito que quanto menos percebida for a minha presença, mais genuíno será o momento capturado, já que ao pedir permissão, antes de tirar uma fotografia, perde-se o momento espontâneo que pretendíamos capturar. A resposta mais provável das pessoas será um definido "não", ou, como acontece muito em África, o pedido de dinheiro em troca da fotografia.

O registo tornou-se mais importante do que a experiência em si

Ao pensar na pergunta “Vais lucrar com essas fotos?”, percebo que há uma verdade inegável nisso. A fotografia é o meu trabalho, a minha fonte de sustento. Mas também é a maneira pela qual posso mostrar ao mundo como certas sociedades vivem e, às vezes, sensibilizar pessoas que estão afastadas de determinadas realidades, especialmente no ocidente. Sou fotógrafo, sou fotojornalista, mas também sou humano. E foi essa humanidade que floresceu na Zâmbia.

Parei para pensar: se estivesse na porta da minha casa ou na minha banca de mercado, gostaria que alguém se aproximasse, sem sequer cumprimentar, e me tirasse uma fotografia, seguindo depois o seu caminho? Provavelmente não. Na Zâmbia, esse pensamento invadiu-me muitas vezes. E, de certa forma, mudou-me. Agora, antes de fotografar, apresento-me, percorro a aldeia sem sequer levantar a câmara. Cumprimento com um simples "Hello, how are you?"

DANIEL RODRIGUES

Estamos numa era em que as pessoas preferem tirar uma fotografia e publicá-la instantaneamente nas redes sociais em vez de viverem o momento. O registo tornou-se mais importante do que a experiência em si. Atualmente, vivemos cada vez menos. É mais relevante mostrarmos que estivemos em algum lugar do que, efetivamente, aproveitarmos o facto de termos estado. Apesar de ser fotógrafo e não um entusiasta das redes sociais, quero registar momentos, lugares e pessoas que encontro no meu caminho. É verdade que continuo a capturar instantes sem pedir permissão, para não perder o momento, mas desde que comecei a ponderar mais sobre este assunto, “perco” inúmeras fotografias. No entanto, por outro lado, vivo mais o momento com as pessoas.

Um bom exemplo desta nova abordagem, que não esquecerei, aconteceu numa missa para a qual fui convidado. Fotografei e filmei o necessário para o meu trabalho e, depois de cumprir essa tarefa, desliguei as máquinas e mergulhei simplesmente na experiência, vivendo o momento. E que momento foi esse! As pessoas, os cânticos, as vozes, a celebração. Foi algo verdadeiramente inesquecível! Até hoje, recordo aquele momento com um sorriso no rosto apenas porque o vivi com aquelas pessoas.

A travessia da Zâmbia ensinou-me que a vida não se resume à fotografia ou às redes sociais. É crucial cultivar a convivência e libertarmo-nos dos dispositivos eletrónicos. Parar, conversar, conhecer e aprender com novas culturas, sermos mais humanos. Foi exatamente isso que fiz na Zâmbia, um país com pessoas genuínas que me ensinaram tanto. Viajar não é apenas um meio de enriquecer o nosso conhecimento cultural, mas também uma oportunidade de crescimento pessoal. E viajar assim, a pedalar uma E-bike, é, sem dúvida, uma experiência que deixa todas as marcas em mim e nenhuma no ambiente.

Atravessar África numa bicicleta elétrica para promover o uso dos meios de transporte sustentáveis, reduzir a pegada ecológica e conscientizar a sociedade para as alterações climáticas. Daniel Rodrigues relata a viagem De Capetown ao Cairo, pioneira, de 14 mil quilómetros.

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