De Cape Town ao Cairo

"Não tenho palavras, esta é a paisagem mais incrível que já vi"

Já visitei alguns desertos ao longo da minha vida, mas o da Namíbia é, sem dúvida, um dos mais impressionantes. A vantagem de percorrê-lo de bicicleta elétrica é que temos tempo para apreciar cada detalhe de uma paisagem que muda a cada 10 quilómetros.

"Não tenho palavras, esta é a paisagem mais incrível que já vi"
DANIEL RODRIGUES

Sempre fui um amante do deserto, mesmo sem conseguir explicar porquê. Fascina-me o silêncio que se encontra no meio da vastidão. E o deserto da Namíbia não me saía da cabeça, pela sua grandeza. E se me povoava, antes de começar a pedalar, agora, depois de ter terminado esta etapa, está ainda mais presente. Foram centenas de quilómetros numa travessia árdua e exigente, mas, tal como esperava, foi muito além do que imaginei. Foi fascinante.

DANIEL RODRIGUES

O calor era extremo durante o dia, o frio intenso durante a noite, as estradas de terra, traiçoeiras, repletas de pedras e areia, e, principalmente, o vento forte, transformaram esta epopeia de cerca de 650 quilómetros num desafio mental e físico. No entanto, o que me ajudou a superar as adversidades foram as pessoas que encontrei nas chamadas estradas de "placas de zinco".

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Durante horas sem ver ninguém, nunca me senti sozinho

Quando dei início à minha pedalada, em direção ao deserto, ainda pensava na solidão que senti na África do Sul. Mas no meio da vastidão do deserto da Namíbia, mesmo durante horas sem ver ninguém, nunca me senti realmente sozinho. E quando cheguei à aldeia de Assuenkenhr, no sul do deserto da Namíbia, o objetivo era encontrar um lugar para recarregar a bateria da minha bicicleta elétrica, almoçar e continuar em direção ao norte, enfrentando os 113 quilómetros que me aguardavam no meio do nada, até ao próximo ponto de recarga.

No entanto, gostei tanto da aldeia que, depois de um segurança de uma vinha, que estava a retirar energia do posto de eletricidade do único supermercado da aldeia e única estrutura sem ser de palha ou de chapa, me permitir carregar a minha bicicleta, decidi montar a minha tenda ali.

Peguei nas minhas câmaras fotográficas e caminhei pela aldeia.

Sentia uma vontade enorme de conviver, conversar e fotografar, após uma semana na África do Sul imerso na solidão.

DANIEL RODRIGUES
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Não poderia ter escolhido um local melhor. Passei horas a percorrer a aldeia, onde fui recebido com tanta simpatia que desejei poder ficar mais do que um dia. Mas não era possível.

Tinha milhares de quilómetros pela frente e um vasto deserto a enfrentar. Assim, na manhã seguinte, aos primeiros raios de sol, pus-me novamente na estrada de terra e prossegui com a minha travessia pelo deserto.

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Já visitei alguns desertos ao longo da minha vida, mas o da Namíbia é, sem dúvida, um dos mais impressionantes. A vantagem de percorrê-lo de bicicleta elétrica é que temos tempo para apreciar cada detalhe de uma paisagem que muda a cada 10 quilómetros.

Nos últimos dias, tenho-me ouvido a repetir a frase, que grito em voz alta pelo caminho: "Não tenho palavras, esta é a paisagem mais incrível que já vi até agora".

As cores diversas e os tons que se revelam nas diferentes texturas são apaixonantes. Na mesma paisagem podemos ver dunas vermelhas, amarelas, formações rochosas negras e o verde das árvores. A mistura de cores e tons que se encontra neste deserto é admirável.

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Cristiano Ronaldo no deserto da Namíbia

Apesar de me sentir fascinado pela beleza do deserto, o que mais me marcou foram as pessoas. Num determinado dia, após deixar para trás uma aldeia mineira no deserto, um jovem de 21 anos apareceu e pedalou ao meu lado durante cerca de 10 quilómetros, apenas para me fazer companhia.

Quando lhe disse que era português, ele respondeu: "Cristiano Ronaldo!". O jovem confessou que já me tinha visto no dia anterior, mas não tinha tido coragem de me abordar. Em tom de brincadeira, perguntei se ele me queria acompanhar até ao Cairo, e ele até considerou a hipótese, mesmo sabendo que não seria possível. O menino ficou triste e eu a saber que talvez não devesse ter perguntado.

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Ao longo da minha travessia pelo deserto da Namíbia, algo que me surpreendeu foi o afago e o cuidado das pessoas que encontrava pelo caminho.

Muitas vezes, paravam os carros para perguntar se eu estava bem e se precisava de água, comida ou qualquer coisa. Essas paragens, por vezes, resultavam em conversas prolongadas, sob o sol escaldante, com os turistas sul-africanos que estavam a aproveitar as férias escolares para fazer uma viagem pela Namíbia.

Todas as opções de alojamento esgotadas

Encontrei no país vizinho o que mais me faltou na África do Sul, o contacto com os sul-africanos. Desde as pessoas que me acolheram em suas casas até aquelas que me ofereceram comida, como o caso do Leslie, ou simplesmente me permitiram carregar a minha bicicleta elétrica, não posso deixar de destacar as pessoas que me ajudaram em Sesriem.

Depois de horas a pedalar sob um sol escaldante e um vento quente, cheguei a Sesriem. Ali todas as opções de alojamento estavam esgotadas, inclusive o parque de campismo. Mas foi na estação de serviço da cidade, uma das mais visitadas por ser a porta de entrada para o Parque Nacional de Sossusvlei, onde se encontra o icónico DeadVlei, com as suas árvores mortas e algumas das maiores dunas do mundo, que um grupo de amigos, que ali estavam de visita e a acampar no parque de campismo, intitulando-se de uma família, me ajudaram.

Ao verem a minha exaustão e sem lugar para montar a minha tenda, prontamente me deram espaço para acampar ali ao lado deles e ainda me ofereceram um belo jantar. O regresso à tenda depois daquele churrasco trouxe-me uma certa saudade da minha família e dos meus amigos.

Depois de visitar o magnífico Parque Nacional de Sossusvlei, a minha jornada pelo deserto prosseguiu pelas estradas em condições precárias. Apesar da fadiga, fui protelando o descanso e acabei por sofrer as consequências.

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Percebi que estava no limite

As distâncias entre as cidades ficavam cada vez maiores, e em estradas cada vez mais deterioradas, a minha condição física foi piorando até afetar a minha mente. Os últimos quilómetros do deserto foram marcados pelo sofrimento.

Foram vários dias a olhar constantemente para o chão, atento aos buracos, pedras e areia, para evitar quedas. E numa tarde, completamente exausto e já sem conseguir pensar, percebi que estava no limite das baterias e ainda tinha de chegar à capital da Namíbia.

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O GPS marcava a cidade a 124 km. Sem comida e apenas um litro de água, poucos quilómetros à frente, surgiu uma quinta no meio do deserto. Decidi tentar a minha sorte e bati à porta, procurando ajuda para carregar as baterias da minha bicicleta elétrica. Gosto de pensar que nada acontece por acaso, e não foi por acaso, naquele dia, que conheci Clyde Foster, fotógrafo de planetas que contribui com fotografias para a NASA.

Depois de horas à conversa, no dia seguinte, às 5 da manhã e com uma temperatura de 3 graus, estávamos nós, a contemplar e fotografar Saturno e Júpiter através do seu telescópio. As probabilidades de encontrarmos um fotógrafo no meio do deserto são raras, certamente, mas o Clyde foi a companhia que precisei para recarregar todas as baterias dos equipamentos e, as mais importantes, as minhas.

DANIEL RODRIGUES

O parafuso partiu-se na altura certa

Tracei como objetivo chegar a Windhoek antes do anoitecer, mesmo sabendo que teria de enfrentar ventos fortes e subidas íngremes. Despedi-me do Clyde e fiz-me à estrada. Quando faltavam menos de 9 Km para finalmente alcançar o alcatrão, o parafuso que prendia o suporte dos alforges da minha bicicleta partiu-se devido ao peso excessivo que carrego. Felizmente, uns senhores deram-me boleia até ao centro da cidade, onde pude resolver o problema.

Penso agora que o parafuso se partiu na altura certa; eu estava no meu limite físico e sentia-me a desmoronar mentalmente. Foi bom ter acontecido porque me obrigou a parar, descansar e preparar-me para enfrentar as retas asfaltadas do próximo país, o Botswana, mesmo sofrendo até chegar a fronteira, com frio extremo de noites com 4 graus negativos, e sensação térmica de -9, e rajadas de vento que por várias ocasiões quase me fizeram cair.

Embora atravessar o deserto da Namíbia tenha sido uma das coisas mais desafiadoras que já fiz em termos físicos, repetiria tudo novamente sem pensar duas vezes.

A beleza indescritível deste imenso pedaço de terra e o carinho das pessoas fizeram com que a dor e algum sofrimento valessem a pena. Agora, é tempo de olhar para as próximas etapas desta jornada e dar as boas-vindas às novas paisagens e ao encontro com algumas espécies fascinantes.

Obrigado, Namíbia, tenho a certeza de que voltarei. Olá, Botswana!

Atravessar África numa bicicleta elétrica para promover o uso dos meios de transporte sustentáveis, reduzir a pegada ecológica e conscientizar a sociedade para as alterações climáticas. Daniel Rodrigues relata a viagem De Capetown ao Cairo, pioneira, de 14 mil quilómetros.

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