De Cape Town ao Cairo

O mundo do "mzungu, give me my money"

É interessante perceber como a linha invisível de uma fronteira causa tantas mudanças nas pessoas e na paisagem. Ao deixar para trás a Zâmbia do "How are you?", e o meu quinto país na viagem e onde tanto aprendi acerca das pessoas, iniciei a minha jornada no Malawi e no mundo do "Mzungu, give me my money".

O mundo do "mzungu, give me my money"
DANIEL RODRIGUES

Apesar da diferença de atitude, sentida inicialmente, à medida que seguia para norte, as pessoas tornavam-se mais amigáveis neste país onde a cor verde predomina na paisagem.

Como tem sido comum, nesta jornada, cada dia é um turbilhão constante de emoções que me fazem aprender a lidar com várias lutas. E viajar tem essa particularidade, faz-nos crescer e ver as coisas numa perspetiva diferente. Ensina-nos a aceitar antes de julgar. Viajar é uma disciplina que nenhuma escola é capaz de ensinar. No entanto, viajar por muitos meses e longe do nosso lar também tem o seu lado negativo.

DANIEL RODRIGUES

“Aqui, a saudade aparece mais intensa e dolorosa”

Perdemos momentos especiais com amigos e familiares, que continuam as suas vidas sem nós. Perdemos o crescimento dos filhos ou, no meu caso, dos meus sobrinhos, o primeiro dia de escola deles, a oportunidade de estar presente para partilhar conquistas com os amigos. Há um sentimento de impotência quando um familiar adoece e só podemos oferecer uma simples videochamada como consolo.

Às vezes, aqui, a saudade aparece mais intensa e dolorosa. Mas é nesses momentos que penso que estar longe das pessoas de que gosto, é o preço que escolhi pagar nesta jornada que, espero, possa contribuir para melhorar a vida e o mundo das futuras gerações.

O casamento do meu irmão e da minha cunhada, aconteceu na passada semana e eu não pude estar presente num dos dias mais felizes da vida deles. E mesmo apesar de saber que a alegria invadiu a minha família naquele dia, fui tomado por uma tristeza difícil de compreender.

Nenhuma tecnologia poderá nunca substituir a presença. E estar longe, nesse dia, sem poder viver a felicidade dos meus, dentro de um quarto solitário, foi duro. A vontade de estar presente, e essa impossibilidade, tem sido a parte mais difícil desta jornada. Quando me sinto mais frágil, penso sempre, para me reconfortar, que talvez o mais importante não seja estar presente apenas um dia, mas sim ao longo da vida. Os abraços, serão dados à minha chegada.

DANIEL RODRIGUES

“Demorei alguns dias para aceitar que era a nova realidade”

A paisagem exuberante e as pessoas que encontrei ao longo da estrada contribuíram para elevar o meu ânimo. Apesar do constante "Mzungu, give me my money", gritado pelas pessoas que ia encontrando, na maioria das vezes, era acompanhado por um sorriso.

"Mzungu" é a palavra usada para descrever uma pessoa de pele branca em países como o Malawi, Tanzânia e Quénia. Essa mudança foi abrupta e demorei alguns dias para aceitar que era a nova realidade. Muitas vezes, o termo "o meu dinheiro" era proferido, infelizmente, na maioria das vezes por crianças que não compreendem o significado do que estão a dizer, quando se deparam com um "Mzungu", porque nem se trata sequer de um pedido, apenas de uma expressão.

Assim, é importante aceitar isso e, sempre que possível, explicar aos adultos a importância de não pedirem dinheiro de forma insistente. Admito que às vezes me tornei um aborrecido ao gastar muito tempo a discutir este tema com os adultos que encontrava, mas acredito que passar a mensagem de que isso é errado pode fazer a diferença. Há sempre espaço para a mudança e ela depende, por vezes, de pequenos passos.

DANIEL RODRIGUES

“Fui recebido com uma dança, à qual me juntei”

A minha passagem pelo Malawi também incluiu fotografar dois projetos da EDP no terreno: o projeto agrícola aQysta e um centro que é uma clínica/orfanato numa aldeia chamada Chezi. Tive a oportunidade de testemunhar, em primeira mão, como o acesso à energia limpa, seja através de painéis solares ou bombas hidráulicas, pode transformar completamente a vida das pessoas que anteriormente enfrentavam dificuldades.

Além de serem projetos sustentáveis, melhoram as condições de vida na clínica hospitalar, proporcionam energia para melhorar o bem-estar de órfãos que ali residem e permitem a irrigação de campos agrícolas em duas aldeias do país que costumavam sofrer com a falta de água fora da estação das chuvas. A receção calorosa e os sorrisos constantes das pessoas demonstravam o sucesso destes projetos. Ali fui recebido com uma dança, à qual me juntei. Também tive a oportunidade de conviver durante quatro dias com um grupo de freiras indianas, muito prestáveis e delicadas que me trouxeram memórias da Índia.

As deliciosas refeições, durante esses dias, eram marcadas por conversas animadas e muitas gargalhadas. São estas reações de alegria que me fazem acreditar que iniciativas de sustentabilidade, especialmente aqui, em África, podem mudar a vida não apenas de uma pessoa, mas de muitas que têm tão pouco.

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“Consegui enganar as saudades”

Após passar vários dias a documentar esses projetos, era hora de voltar à estrada, em direção ao norte e ao Lago Malawi. Estava ansioso para lá chegar porque é uma região que já explorei, sobretudo, a zona sul do lago, onde estive em 2016, quando documentei, para o New York Times, os problemas que os albinos enfrentam nesta região de África.

A minha paragem no lago, na altura, foi essencial para recuperar energias. Por isso aguardava agora com ansiedade a minha chegada. O caminho até lá não foi nada fácil.

Depois de várias semanas em estradas quase planas, o terreno começou a mudar e enfrentei muitas subidas íngremes e estradas em más condições. No entanto, a mudança no terreno era acompanhada por uma mudança nas atitudes das pessoas à medida que seguia para norte. A parte sul do país lembrou-me um pouco as hostilidade das pessoas do Botswana, mas o norte do Malawi é lar de pessoas com um sorriso no rosto, sempre simpáticas, e que nunca me pediram dinheiro enquanto eu as fotografei.

DANIEL RODRIGUES
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As saudades fizeram com que eu ficasse mais tempo do que o previsto no Lago Malawi. Uma pessoa como eu, que vive perto do mar, não consegue ficar muito tempo sem sentir a areia sob os pés e caminhar à beira da água acompanhado pelo som das ondas. Mesmo que não tenha estado num oceano, mas num lago, e tenha faltado o cheiro característico do mar, que tanta falta me faz, consegui enganar as saudades e sentir-me como se estivesse no meu lar. Os poucos dias que passei ali foram essenciais para recarregar energias.

Acordava ainda antes do nascer do sol para fotografar, depois descansava, caminhava e nadava. Como se não bastasse, à felicidade daqueles dias, junto o carinho e a atenção das pessoas da aldeia onde fiquei que foram as pessoas mais simpáticas que encontrei no Malawi, o que me ajudou a ganhar inspiração para fotografar os pescadores e toda a vida quotidiana que acontecia junto ao lodge onde estava hospedado.

DANIEL RODRIGUES
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Agora está na hora de rumar ainda mais a norte, em direção ao sétimo país da minha viagem, a Tanzânia, o país do "Mambo" - palavra usada como cumprimento entre as pessoas daquele país.

Até lá, espero chegar à marca dos 5000 quilómetros na minha bicicleta elétrica BEEQ que decidi chamar de Fénix. 5000 quilómetros percorridos deixam muitas histórias atrás, mas buscam muitas mais à frente. É por isso que eu e a Fénix, em nome de um mundo mais sustentável, queremos rumar em direção ao Cairo.

Atravessar África numa bicicleta elétrica para promover o uso dos meios de transporte sustentáveis, reduzir a pegada ecológica e conscientizar a sociedade para as alterações climáticas. Daniel Rodrigues relata a viagem De Capetown ao Cairo, pioneira, de 14 mil quilómetros.

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