De Cape Town ao Cairo

As vozes daquelas curiosas crianças continuavam a ecoar nos meus sonhos

Já se passaram quase quatro meses desde o início desta incrível epopeia, que tem sido cruzar o continente africano numa bicicleta elétrica. Os desafios constantes da travessia refletem-se, sobretudo, no corpo. Mas as lições sobre o que sou ou não capaz de fazer têm sido inesquecíveis. Há vozes que vão ecoando nos meus sonhos.

As vozes daquelas curiosas crianças continuavam a ecoar nos meus sonhos
DANIEL RODRIGUES

A exaustão é quase permanente pelo esforço redobrado, principalmente, devido às condições climáticas que, como muitos afirmam aqui, não parecem ser normais nesta época do ano. No entanto, esta viagem tem-se revelado, acima de tudo, uma experiência de conhecimento, não apenas dos locais da história ou das pessoas, mas especialmente, de mim. As valiosas lições sobre o que sou ou não capaz de fazer, têm sido inesquecíveis porque são transformadoras.

Percorridos 5.000 quilómetros, penso, a cada pedalada, sobre a imensa sorte que tenho, especialmente, quando passo por pequenas aldeias e vilas onde se vive longe das exposições das redes sociais e dos ecrãs. Aquilo que temos como garantido na nossa vida ocidentalizada, não conta aqui como não conta noutros tantos cantos do planeta que vivem com quase nada.

Será que compreendemos verdadeiramente o privilégio de não termos de percorrer quilómetros diariamente em busca de água para cozinhar ou tomar banho?

DANIEL RODRIGUES
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Devíamos sentir culpa todas as vezes que deixamos as luzes acesas pela casa

Aqui, frequentemente, isso significa transportar apenas um balde, muitas vezes à cabeça, ao longo de quilómetros, numa tarefa quase sempre realizada por mulheres e crianças.

Em muitas habitações, feitas de palha ou barro, pequenos painéis solares no telhado constituem a única fonte de luz durante a noite, graças à energia solar. Só isto deveria fazer-nos sentir culpa de todas as vezes que cedemos à preguiça e deixamos as luzes acesas pela casa.

Na última semana, fiz uma paragem no Ruanda com o propósito de fotografar um projeto financiado pela EDP, com painéis solares, no maior campo de refugiados daquele país. Essa paragem naquela região foi emocionante.

DANIEL RODRIGUES

Mais de 60 mil refugiados vivem no Mahama Camp

O Mahama Refugee Camp alberga mais de 60.000 refugiados, principalmente do Congo e do Burundi. Com uma área de 160 hectares e vista para a Tanzânia, o campo encontra-se dividido em três zonas principais. Todos os dias, centenas de novos refugiados chegam, e já se planeia criar uma quarta zona no campo.

Aqueles milhares de pessoas vivem naquele campo como se vivessem numa pequena cidade. Contam com os mais diversos tipos de comércio, entre lojas, mercado, escolas e até um Hospital gerido por ONG’s. Comparando este campo de refugiados aos típicos campos de refugiados, percebe-se a diferença nas condições e modelos de vida.

Estes atributos partiram da iniciativa do presidente ruandês, Paul Kagame, também ele, noutro tempo, refugiado, que exigiu que os campos do seu país fossem diferentes, com melhores condições. Apesar das qualidades do local, não nos podemos esquecer que estas pessoas foram forçadas a abandonar os seus lares, deixando para trás os seus países, as suas casas e, em muitos casos, as suas famílias. São refugiados, independentemente das condições de vida que possam ter.

DANIEL RODRIGUES

As vozes daquelas curiosas crianças continuavam a ecoar nos meus sonhos

O acesso ao Mahama Refugee Camp é rigorosamente controlado e a entrada de pessoas brancas é apenas autorizada em raras excepções, especialmente a jornalistas. Depois de ter sido autorizado a entrar, tive de respeitar diversas restrições sobre o que podia documentar, e o meu tempo dentro do campo foi limitado.

Estas limitações de acesso fazem com que seja uma raridade a presença de uma pessoa de pele mais clara nas ruas do campo, especialmente com uma câmara fotográfica. Isso tornou a tarefa de fotografar, numa verdadeira proeza. Assim que entrei no perímetro do campo, dezenas de crianças aproximaram-se de mim.

À medida que avançava, mais se juntavam. Após uma hora, já era acompanhado por cerca de uma centena de crianças. Tentavam tocar-me, curiosas por nunca terem visto alguém de pele branca ou pelos nos braços. Lidar com estas centenas de crianças e, ao mesmo tempo, capturar imagens sem aparecerem mãos à frente da objetiva, a cada disparo, foi um desafio constante. Os dias ali eram tão intensos, que, à noite, quando ia descansar no Hotel fora do perímetro do campo, as vozes daquelas curiosas crianças continuavam a ecoar nos meus sonhos.

No último dia, depois de escapar às centenas de crianças, tive a oportunidade de passar mais de uma hora a conversar com um casal de refugiados. Bahati Jerôme, de 38 anos, e a esposa Esperansa, de 33, fugiram do Burundi em 2016, depois de Bahati ter sido ameaçado por uma arma de fogo. Houve mesmo um disparo antes do agressor lhe perguntar sobre o partido político que ele apoiara durante a guerra civil que supostamente acabara em 2005.

DANIEL RODRIGUES
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"Finalmente, deixámos de dormir em tendas”

Naquele dia decidiram abandonar o país e conduzir até ao Ruanda, passando primeiro pelo Congo. Este casal tem vivido em campos de refugiados desde 2016. Passaram por vários até chegarem a Mahama em 2019, onde, por fim, assentaram. "Finalmente, desde que chegámos aqui, deixámos de dormir em tendas" referem, reconhecendo que têm, agora, condições mínimas de vida.

Apesar da alegria aparente, a saudade de casa vem ao de cima no discurso do casal.

"Embora, felizmente, hoje tenhamos uma casa com luz à noite, graças a este powerbank, não é fácil estar longe de casa, longe do nosso país. Continuamos a viver sem electricidade e a partilhar uma casa de banho com mais 100 pessoas”.

Bright, o filho, nasceu em Mahama e não conhece outra realidade senão a modesta casa com uma pequena sala e um quarto, que também serve de cozinha, onde os três vivem. O sustento desta família vem dos 10 000 francos ruandeses, cerca de 8€, e do peixe que Bahati vai comprar à capital Kigali para vender depois no mercado daquele campo de refugiados.

O mais surpreendente é que, mesmo com tão pouco, a maioria das pessoas que vou encontrando continua a sorrir e a irradiar esperança. Há tanto que podemos aprender com elas. Há quase 4 meses que eu ando a aprender.

Atravessar África numa bicicleta elétrica para promover o uso dos meios de transporte sustentáveis, reduzir a pegada ecológica e conscientizar a sociedade para as alterações climáticas. Daniel Rodrigues relata a viagem De Capetown ao Cairo, pioneira, de 14 mil quilómetros.

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