A Beleza das Pequenas Coisas

“O livro [apresentado por Passos Coelho] é revanchismo e um retrocesso nos direitos fundamentais, medos e 'papões' para assustar pessoas”

Raquel Freire é cineasta e argumentista e acredita profundamente no poder do cinema na construção da liberdade e de mundos novos. Filma o que a incomoda, o que a apaixona, o que a inquieta e o que quer mudar e libertar no país. Autora de uma vasta filmografia e do recente “Mulheres do meu país”, que passou na RTP, ouçam-na aqui nesta conversa em podcast com Bernardo Mendonça

Raquel Freire é uma filha da revolução dos cravos. O pai foi um dos capitães de abril, a mãe era professora na telescola, da RTP, e tinha um ‘Pide’ sempre à perna que a ameaçava e injuriava. Foi com os pais e avós que diz ter aprendido a perder o medo. E relata um episódio em que a mãe lhe conta como superava, de cabeça erguida, as agressões e perseguições do seu ‘Pide de estimação’.

Quanto a isto, recorde-se que há oito anos Raquel Freire disse neste mesmo podcast o seguinte: “As pessoas vivem cheias de medo. O mais importante é libertarmo-nos do medo. Ninguém é feliz com medo.”

Curiosamente, estas frases continuam atuais e a reverberar em nós. Atualmente, qual a dimensão do medo na nossa sociedade? E quem mais anda a tirar partido dele na política e na sociedade?

Raquel responde neste episódio, dando conta de que vivemos numa democracia em que se cumpriu a liberdade mas não a igualdade. E onde o medo está ainda fresco na memória e na cultura. “A nossa democracia é jovem, precária, precisa de se afirmar, de crescer, de se desenvolver. E é claro que o medo existe. Porque nós vivemos num regime há 50 anos baseado no medo. E não era no medo teórico. Era no medo concreto. Quem não obedecesse, quem saísse da norma, era preso, era torturado, era mandado para um campo de concentração no Tarrafal, era morto. Se fosse artista, era silenciado e a seguir era preso, torturado.”

E Raquel dá conta que há movimentos “de uma extremíssima direita” que estão a fazer uso dele. E revela estar preocupada com a adesão dos mais jovens aos discursos da direita extremista no TikTok.

A filmografia de Raquel é de causas e de lutas por direitos sociais e tem dado que falar em inúmeros festivais internacionais de cinema. Como é o caso de “Rio Vermelho”, “Rasganço”, “Esta é a Minha Cara”, “Veneno Cura” ou “Dreamocracy”.

A cineasta acredita no poder do cinema na despatriarquização e descolonização do pensamento e das instituições. E o que a move é a construção da liberdade na vida e na arte. Para si e para toda a gente. Com práticas feministas, inclusivas, antirracistas e ecologistas. E é da opinião que a revolução também se faz com a empatia, a confiança, a partilha.

Exemplo disso é o seu último filme, “Mulheres do meu país”, de 2021, uma obra premiada no Porto Femme International Film Festival - que resultou também numa série exibida na RTP- a celebrar a multitude de mulheres que fazem este país avançar todos os dias.

Para o fazer, Raquel inspirou-se nas suas avós e na sua mãe, todas feministas, e inspirou-se no livro sagrado de resistência que lhe deram e que sempre a acompanhou: “As Mulheres Do Meu País” da escritora e jornalista Maria Lamas.

Nesta versão atual de “Mulheres do meu país”, Raquel Freire cruzou 14 histórias que dialogam, contrastam e contam as muitas mulheres que habitam este território.

“Operárias e investigadoras, pescadoras e empregadas de limpeza, agricultoras e artesãs, jovens a dar cartas no rap ou mais maduras envolvidas nas questões ambientais, mulheres trans, mulheres lésbicas, mulheres com diferentes capacidades, mulheres brancas, negras, ciganas. Mulheres. Todas elas que, de uma maneira ou de outra, enfrentam inúmeras opressões, injustiças e desigualdades.”

Raquel chamou-as de heroínas anónimas. Mulheres que são também exemplos de bravura, de inteligência, de superação, emancipação e inspiração.

Na mesma semana em que foi publicado o livro “Identidade e Família”, um manifesto apresentado pelo antigo primeiro ministro Pedro Passos Coelho, contra o que chamam de “adversários da família”, a alegada “ideologia de género” e a suposta “cultura da morte”, Raquel Freire defende os valores democráticos e da liberdade de ser e de escolher, e conta como anda há uma vida a lutar pelos direitos e dignidade das mulheres e de todas as famílias e minorias.

Raquel considera-se uma ‘radical do amor’, contra a polarização e o discurso “do nós e do eles” que se escuda na tradição para praticar opressão. E por esta sua veia ativista aqui conta ter pago uma fatura. “Durante 15 anos não recebi apoios do ICA. E sei que é por isto. Um elemento do júri chegou a escrever que eu filmo ‘mulherzinhas’. Já ouvi de tudo.”, conta neste episódio.

E, nesta primeira parte do podcast, Raquel é ainda surpreendida pelos áudios e perguntas da atriz e amiga Ana Brandão e do irmão e médico Vasco Freire.

Na segunda parte deste episódio, Raquel Freire responde emocionada ao testemunho do irmão Vasco. Qual a sua próxima revolução? Quais são as revoluções que importa fazer agora nos 50 anos do 25 de abril?

Raquel Freire partilha também neste episódio como enfrentou a doença oncológica que descobriu ter no final do ano passado. E deixa um elogio ao SNS e conta como superou o medo, com o apoio do irmão, da família e das suas amizades. “A todas as pessoas que passam ou que um dia passarem por isto, não se isolem”, afirma.

Raquel repete com a escritora, poetisa e ativista Maya Angelou a frase “Não trocaria esta jornada por nada.” Mas Raquel acredita que é possível criar mundos novos com o cinema e planeia filmar até aos 100 anos.

Neste momento, Raquel Freire acaba de terminar a sua 3ª longa-metragem de ficção “Filme Sem Câmara”. Prepara a curta-metragem: “De pequenina” e o filme e série “Mulheres de Abril”, com estreia marcada para 2025, que conta com o apoio do ICA.

E ainda partilha as músicas que a acompanham, lê um excerto do livro “Tudo do amor”, de Bell Hooks, e outro texto de Audre Lorde, que tem sido um mantra para si:

“Quero viver o resto da minha vida, seja ela longa ou curta, com o máximo de gentileza que conseguir gerir decentemente, amando todas as pessoas que amo e fazendo o máximo que puder do trabalho que ainda tenho para fazer.

Vou escrever fogo até que ele saia dos meus ouvidos, dos meus olhos, do meu nariz - de todo o lado.

Até que seja cada respiração minha.

Vou-me libertar como um maldito meteoro!”


Como sabem, o genérico é assinado por Márcia e conta com a colaboração de Tomara. Os retratos são da autoria de Matilde Fieschi. E a sonoplastia deste podcast é de João Ribeiro.

Até para a semana e boas escutas!

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