A Beleza das Pequenas Coisas

Alexandra Lucas Coelho: “Gaza neste momento não é uma prisão nem um campo de concentração, Gaza é objetivamente um campo de extermínio”

Alexandra Lucas Coelho anda há mais de duas décadas a decifrar os conflitos e guerras no Médio Oriente, uma região que voltou a estar nas bocas do mundo desde o dramático ataque do Hamas, no sul de Israel, a 7 de outubro de 2023. Para ajudar a explicar o que originou a tragédia humanitária sem precedentes que se vive atualmente em Gaza e que já matou 30.000 palestinianos, a escritora lançou este mês uma nova edição revista do seu primeiro livro, “Oriente Próximo”, obra de não ficção sobre Israel e a Palestina, situada entre 2005 e 2007. E destinou os direitos de autor para a região. “Gaza já não é uma prisão a céu aberto, nem sequer um campo de concentração. Gaza é objetivamente um campo de extermínio” Ouçam-na no podcast “A Beleza das Pequenas Coisas” com Bernardo Mendonça

Esta conversa em podcast com a escritora e jornalista Alexandra Lucas Coelho começa com uma frase da filósofa, bióloga e teórica feminista Donna Haraway, em “Um Manifesto Ciborgue”, um texto de 2022 que parece ter ganho mais impacto, camadas e significados nos últimos cinco meses: “O céu ainda não caiu. Ainda não. E se houve um tempo em que precisamos de ser do mundo é agora.” Alexandra esclarece que, também como romancista, escreve como uma testemunha do seu espaço e do seu tempo, como tantos outros escritores. “Não consigo imaginar o meu trabalho, enquanto jornalista e escritora, sem o mundo. Estar no mundo, do mundo. O que significa estarmos vivos em conjunto no mesmo tempo?”

Com vários prémios de jornalismo e literatura, em 2013 foi distinguida com o grande prémio de romance da Associação Portuguesa de Escritores pelo seu “E a noite roda” - um dos seus vários romances largamente aclamados - como o seu “Deus dará”, de 2016.

Mas é sobre o seu livro de estreia que este podcast se concentra como ponto de arranque: “Oriente Próximo”, uma obra de não ficção sobre Israel e a Palestina, situado entre 2005 e 2007, que acaba de ser reeditado, pela editora Caminho, com algumas alterações, um mapa e um índice onomástico. E como descreve Alexandra muito mudou desde então, mas o que se vive agora nesse Oriente Próximo, visto por muitos como distante, “já se anunciava” nas páginas deste seu livro, com vozes diversas de israelitas e palestinianos que ajudam a perceber a origem desta tragédia humanitária sem precedentes que se vive atualmente em Gaza.

Nas palavras de Alexandra, “uma tragédia também para o jornalismo, para as convenções e organizações de direitos humanos, para a Europa de que estas fronteiras são filhas. E para o que significa estar vivo em conjunto.”

Autora também do poderoso livro “Líbano, labirinto”, que recebeu o prémio Oceanos, em 2022, Alexandra Lucas Coelho conta neste episódio do ‘Beleza das Pequenas Coisas’ não só o que foi assistindo na Palestina e Israel ao longo de mais de 20 anos de reportagens, como também o que assistiu e testemunhou há poucos meses em reportagem na Cisjordânia Ocupada, no Estado de Israel e em Jerusalém.

Há quase 5 meses que troca mensagens de ‘whatsapp’ com Gaza, com amigos próximos que relatam como se sobrevive e se resiste naquele pedaço de inferno na terra, com uma população inteira enclausurada, exausta, ferida, no meio de destroços e doença, entregue à sorte, à fome, a procurar escapar da morte, dos estilhaços das bombas e ataques constantes das forças de Israel, que continuam a arrasar aquele território palestiniano, interdito a jornalistas de fora.

A meio da primeira parte deste episódio, ouvimos um testemunho da palestiniana Shahd Wadi, doutorada em Estudos Feministas pela Universidade de Coimbra, com uma dissertação que serviu de base para o livro “Corpos na trouxa: histórias-artísticas-de-vida de mulheres palestinianas no exílio” (2017).

Shahd refere a importância de se humanizar e dar voz às pessoas que estão a sofrer em Gaza, e que se passou a sentir próxima de W., apesar de não o conhecer, mas que tem sido presença constante nas crónicas e partilhas nas redes sociais de Alexandra Lucas Coelho. E a escritora aproveita para dar conta sobre os últimos relatos que teve de W. no terreno. Relatos duros, incompreensíveis, que vão além das condições de uma guerra.

“No norte de Gaza as pessoas estão a comer a comida dos animais, erva da rua, algas da praia com esgoto. Sem precedentes. Mas os palestinianos estão a interpelar-nos, eles estão de pé. É extraordinário que depois de 140 e tal dias de guerra possamos ainda ver a dignidade, a graça, a coragem, a generosidade, com que todos os dias, apesar de tudo o que vivem, aquelas pessoas estão de pé. E o mundo continuamente não está de pé. Isto é uma indignidade e uma vergonha para o mundo. Não é para eles.”

Contas feitas até ao dia desta gravação, o número de mortos em Gaza superam os 29 mil desde que a ofensiva militar israelita começou. Mais de 10 mil são crianças. Numa clara desproporção perante os 1.200 mortos nos ataques de 7 de outubro do Hamas no Sul de Israel. E Netanyahu, primeiro-ministro de Israel, prometeu uma maior ofensiva terrestre em Rafah, no sul de Gaza, se o Hamas não libertar reféns até dia 10 de março.

Neste momento, pelo menos 1.4 milhões de pessoas amontoam-se em Rafah, a sul de Gaza, o último quadrado de esperança onde a guerra rua a rua ainda não chegou, mas a ameaça dessa grande ofensiva permanece, o que resultará num massacre… já que não há mais para onde fugir.

“Nós vimos agora com os nossos olhos, e ouvimos com os nossos ouvidos, como um campo de concentração sem precedentes no nosso tempo de vida se transformou num campo de extermínio. Claro que a palavra é genocídio. As pessoas não estão só a ser mortas à bomba e à bala, estão a ser mortas de doença e fome.”

No final da primeira parte, ainda ouvimos um testemunho áudio de Zeferino Coelho, editor e fundador da Caminho, que surpreende Alexandra com o seu olhar e uma pergunta, que é a questão de muitos de nós.

Na segunda parte deste podcast, Alexandra responde ao seu editor Zeferino Coelho, fala sobre os seus romances, que são de um género sem género, que soam a cinema, rádio, jornalismo, poesia, e como para si escrever e viver “é uma luta de libertação”.

A escritora assume aqui que escreve contra as fronteiras, de todo o género, e que não lhe interessa ir de encontro ao que os outros esperam dela. “Quando respondermos às expectativas dos outros estaremos a fazer o nosso pior trabalho. Só há uma vida. E é sagrada. E deve ser vivida em toda a liberdade. Não fiquem presos às expectativas de ninguém. As florestas são vastas e densas. E preciosas são as pessoas que não só não esperam de nós o que fizemos e veem em nós o que ainda não fizemos e não vimos.”

Alexandra dá-nos a ouvir algumas das músicas que acompanham este seu livro “Oriente Próximo”, lê um poema poderoso de Uri Orlev, poeta judeu sobrevivente do Holocausto - dá-nos conta de uma inexplicável coincidência de datas que se apercebeu no carro a caminho desta entrevista que dá outros ecos à poesia de Uri - e ainda lê um excerto da sua autoria sobre uma festa de hip hop num cenário de ataques e bombas.

E agora que se celebram os 50 anos do 25 de Abril e nos aproximamos das votações legislativas, Alexandra revela o que mais admira na nova geração, que não encontrou na sua, o que espera do novo governo, o que deseja para o país e o que importa celebrar, recordar e melhorar na nossa democracia.

Como sabem, o genérico é assinado por Márcia e conta com a colaboração de Tomara. Os retratos são da autoria de Tomás Almeida. E a sonoplastia deste podcast é de João Ribeiro.

Até para a semana e boas escutas!

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