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Humpty Dumpty caiu do muro

O “medo” é um mecanismo de defesa essencial do ser humano, que envolve reações instintivas e o processamento intelectual de emoções.

Humpty Dumpty caiu do muro
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O medo atua, por um lado, como uma resposta emocional e fisiológica automática a uma ameaça percebida. Esta resposta é rápida e muitas vezes ocorre antes de termos a oportunidade de processar conscientemente a ameaça. O sistema límbico, concretamente a amígdala, processa os estímulos que provocam medo e atua para enfrentar o perigo ou fugir dele de forma rápida.

Por outro lado, o medo envolve a avaliação consciente de riscos, memórias de experiências anteriores e a consideração das consequências futuras das nossas ações. O córtex pré-frontal, que desempenha um papel crucial no planeamento, tomada de decisões e regulação das emoções, permite analisar a situação que provoca medo, ponderar acerca da melhor forma de reagir e, em muitos casos, superar os medos infundados através da lógica e aprendizagem.

A interação entre essas reações, emocional e intelectual, pode fazer do medo uma experiência quer imediata e visceral, quer ponderada pelo entendimento do perigo. Por exemplo, podemos sentir um medo instintivo de alturas e saber que estamos seguros atrás de uma barreira que nos permite apreciar a vista. O medo alerta para os perigos, mas também pode ser moldado pela experiência, conhecimento e capacidades cognitivas.

Podemos argumentar que existe uma “indústria” que explora o medo, em diversos setores da economia, da psicologia à segurança, dos media às tecnológicas. Esta indústria não é homogênea ou coordenada, mas resulta de práticas que respondem ao estímulo do medo humano. Desde que atuem nos limites éticos não é errado oferecer produtos e serviços com base em comportamentos do medo, da mesma forma que a indústria da beleza atua legitimamente em comportamentos da vaidade.

O problema surge quando esses limites não são respeitados. As empresas, pela natureza da sua atividade, estão sujeitas ao escrutínio dos seus públicos, o que as torna mais vulneráveis caso não atuem de forma ética e responsável. As instituições e sistemas de governo, pelo contrário, estão mais expostos à tentação do abuso de poder. No discurso político, o medo é um mecanismo comum de controlo e coação.

Esta medalha tem um reverso perigoso. O discurso de ódio e medo cria ruturas irresolúveis numa sociedade onde não existem zonas cinzentas, onde cada vez mais existe apenas um lado certo e um lado errado. A relação entre políticas populistas que exploram o medo e a intransigência de movimentos como a chamada tendência "woke", que visava inicialmente combater injustiças e desigualdades sistêmicas, é cada vez mais intrincada.

As políticas baseadas no medo amplificam as ameaças à segurança, ao modo de vida e aos valores culturais. Promovem a justificação de medidas restritivas, vigilância aumentada e até ações discriminatórias com o argumento de "proteger" a sociedade.

O movimento "woke", numa subversão da sua origem, é paradoxalmente intolerante em relação àqueles com visões contrárias, quando o seu objetivo deveria ser promover a inclusão, tolerância e correção de injustiças.

Este novo medo, instalado numa sociedade em conflito entre visões extremadas, dá lugar à inação. As universidades e escolas não promovem o debate de ideias e o pensamento crítico por medo de repercussões da comunidade educativa. As empresas paralisam, pelo medo de cometer erros. Os media, da informação ao entretenimento, enfrentando pressões de todos os lados, exercem autocensura por medo do chamado "cancelamento" de indivíduos por declarações ou ações consideradas ofensivas.

Na política acentua-se o cenário de polarização, sem posições claras sobre questões sensíveis que podem alienar eleitorados. O medo de serem etiquetados como demasiado “progressistas" ou "conservadores" condiciona reformas sociais críticas, intensifica conflitos e alimenta a hesitação. Em contrapartida, está a fomentar movimentos populistas que se aproveitam da oportunidade. Não existe comunicação e colaboração numa sociedade cada vez mais dividida.

Os medos gerados pelo confronto entre visões extremadas para a humanidade contribuem para um ciclo de estagnação do progresso social. Bill Maher, criticado por dar a sua opinião acerca de assuntos como o racismo ou homofobia, não tendo sido ele próprio vítima de opressão, respondeu que está igualmente limitado na sua visão aquele que está longe como aquele que está demasiado perto, e que não consegue ver mais nada à sua volta.

Em "Alice no País das Maravilhas" Lewis Carroll explora a natureza absurda, surreal e ilógica do mundo que Alice explora. Nessa história o personagem Humpty Dumpty – um ovo que cai de um muro e não pode ser consertado – representa a fragilidade, a inevitabilidade da falha e a incapacidade da autoridade e do poder de reverter certas consequências, uma vez que ocorram.

Humpty Dumpty, frágil e desamparado, caiu do muro e nem o Rei, com todos os seus soldados e cavalos, o conseguiu consertar.

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