Mundo

Sobreviver à dor e ao medo: testemunhos de vítimas de violência sexual na Nigéria

Após receberem relatos de níveis alarmantes de violência sexual contra mulheres e raparigas menores em Benue, na Nigéria, equipas da Médicos Sem Fronteiras começaram a prestar apoio médico e psicológico às vítimas de agressão sexual.

Shiana mudou-se para o campo de Mbawa há cinco anos com a irmã mais velha. Foi abusada sexualmente duas vezes por homens que invadiram a tenda onde se abriga.
Shiana mudou-se para o campo de Mbawa há cinco anos com a irmã mais velha. Foi abusada sexualmente duas vezes por homens que invadiram a tenda onde se abriga.
Kasia Strek/ MSF

A região Centro-Norte da Nigéria tem sido assolada por violentos conflitos nos últimos anos, que forçaram dezenas de milhares de pessoas a fugir de casa. A maioria estabeleceu-se em campos nos arredores de Makurdi, capital do estado de Benue, onde as condições de habitabilidade são precárias e o dia a dia é uma luta constante, especialmente para as mulheres.

Após receberem relatos de níveis alarmantes de violência sexual contra mulheres e raparigas menores, equipas da Médicos Sem Fronteiras (MSF) começaram a prestar apoio médico e psicológico a sobreviventes. Algumas partilharam o que enfrentaram com a organização médico-humanitária.

“Ele prometeu que me daria dinheiro e pediu para nos encontrarmos numa casa fora do campo”, conta Iyua, mãe de seis filhos, habitante da zona rural de Mbawa, que fica a cerca de 20 quilómetros de Makurdi. Viu-se num beco sem saída, numa situação financeira desesperante, sem dinheiro para conseguir comprar alimentos para os filhos: foi por isso que pediu ajuda a um homem que lhe era conhecido. “Quando cheguei, ele disse que só me apoiaria se tivéssemos relações. Eu recusei, mas ele forçou-me fisicamente”, recorda. Após a agressão sexual, Iyua procurou apoio na clínica da MSF, que fornece assistência a vítimas de violência sexual.

O estado de Benue é uma região agrícola no Centro-Norte da Nigéria, atravessada pela segunda maior via navegável do país, o rio Benue, e é frequentemente conhecido como o fornecedor de alimentos do país. Nos últimos anos, porém, a insegurança no Norte da Nigéria forçou muitos pastores a deslocarem-se para Sul, ao mesmo tempo que as alterações climáticas e a degradação do ambiente reduziram a disponibilidade de terras férteis.

A promulgação de uma lei em 2017, que proíbe o pasto em campo aberto, levou ao êxodo de pastores de Benue, que deixaram de conseguir ganhar um sustento, intensificando ainda mais os confrontos armados entre pastores e agricultores. A violência provocada por esses confrontos deslocou quase 400-000 pessoas de casa, segundo a Organização Internacional para as Migrações, com muitas a estabelecerem-se em campos por todo o estado.

Nesses campos, a vida é uma dificuldade constante. Como se não bastassem as condições de habitabilidade precárias e insalubres, há também uma grave escassez de alimentos, água potável e serviços básicos, incluindo cuidados de saúde. Além disso, registam-se níveis alarmantes de violência sexual, que são agravados pelas dificuldades económicas e pelos desequilíbrios de poder entre homens e mulheres, bem como pelo amplo contexto de violência.

Segundo dados da MSF, a maioria dos agressores são parceiros íntimos dos sobreviventes, mas podem também ser meros conhecidos ou estranhos até, civis ou não civis. As mulheres são, muitas vezes, as únicas provedoras da família, e não têm outra escolha senão abandonar os campos em busca de alimentos e madeira para combustível, ficando expostas ao risco de violência sexual.

Dooshima, sobrevivente

Dooshima, estudante nigeriana, trabalhava na quinta, quando foi forçada pela mãe e pela irmã a dar um passeio de moto com um grupo de homens que não conhecia. “Quando nos começámos a aproximar da aldeia, vi uma multidão que gritava, cantava e aplaudia”, lembra Dooshima. “Vi logo que eram canções de casamento.” Foi nesse momento que Dooshima percebeu que tinha sido vendida pela família para casar. Foi também nesse momento que se perguntou se teria um objeto consigo que pudesse usar para tirar a própria vida.

Acabou por casar com um homem 30 anos mais velho que ela e foi trancada numa pequena casa. Tentou escapar, mas foi prontamente encontrada e espancada. Ao fim de três dias presa, o marido entrou em casa e violou-a. Dooshima fugiu novamente, dessa vez com mais sucesso.

Conseguiu chegar a casa, mas foi rejeitada pela família. “A minha mãe disse-me que nunca mais me queria ver”, conta. “Tirou tudo o que eu tinha, incluindo o meu uniforme escolar e os meus livros, e queimou tudo.”

Depois de ser assistida pela MSF, Dooshima descobriu que estava grávida e decidiu interromper a gravidez. Vende agora laranjas, para ganhar dinheiro suficiente e substituir a roupa que a mãe queimou. Planeia aprender a costurar, para conseguir um sustento mais estável para comprar livros e voltar a estudar. “Gostaria de me tornar médica e salvar vidas”, frisa Dooshima.

Kasia Strek

O relato de Shiana

Shiana mudou-se para o campo de Mbawa há cinco anos com a irmã mais velha. Deu à luz dois bebés, mas ambos morreram jovens, precocemente. Vive com uma deficiência desde a infância.

“Estava a dormir, quando bateram à minha porta durante a noite”, descreve. “Um homem prometeu que me traria algo para comer, depois forçou a entrada da tenda e partiu o cadeado. Insistiu em fazer sexo comigo. Recusei, tentei empurrá-lo, mas ele apertou-me os braços e violou-me.”

Shiana foi abusada sexualmente duas vezes por homens que invadiram a tenda onde se abriga – homens que se aproveitaram da sua deficiência física. “Mais uma vez, ontem à noite, houve outro homem que tentou entrar, mas eu acordei rápido e bloqueei a porta por dentro. Isto é algo frequente no acampamento”, sublinha. Shiana não consegue ganhar um sustento, mas, às vezes, vai até ao mercado mais próximo para recolher grãos derramados no chão para vender.

Kasia Strek

A violência contra Seember

Seember vive a umas meras tendas de distância de Shiana. O marido de Seember era agricultor e foi morto durante um ataque noturno. “Foi capturado e baleado quando tentou fugir de casa”, lembra Seember. “Estava morto no chão quando outro homem apareceu e lhe cortou a cabeça com um machete.”

Seember e os dois filhos escaparam e fugiram para o campo de Mbawa. Em abril de 2023, enquanto trabalhava na colheita com outras mulheres sofreu uma emboscada: à sua frente tinha cinco homens, três armados e dois com catanas. Seember relata que os homens discutiram entre si se deveriam ou não matá-la a ela e às outras mulheres, mas acabaram por violá-las.

“Quando vi esses homens a chegar ao campo, fiquei com raiva”, expressa. “Pensei na morte do meu marido e que era a minha vez de deixar este mundo, mas evitei defender-me dos agressores para poder permanecer viva e cuidar dos meus filhos.”

A violência sexual deixou Seember incapaz de caminhar sem o apoio de alguém. Um familiar levou-a até à clínica da MSF no campo de Mbawa, onde recebeu cuidados médicos e de apoio à saúde mental.

Confessa que se sente muito sozinha sem o marido e que em alguns momentos as lembranças perturbadoras lhe toldam os pensamentos. Fanan, o filho adolescente, faz todos os possíveis para confortar e distraí-la: fazendo-a rir ou fazendo tranças no cabelo dela.

Kasia Strek

Crescentes riscos para as mulheres

Iyua, Dooshima, Shiana e Seember são apenas quatro entre milhares de mulheres e raparigas menores que vivem em campos no estado de Benue e que sobreviveram à violência sexual. Sem medidas preventivas, as equipas da MSF alertam que os riscos para as mulheres continuarão a aumentar.

“É importante destacar que o ambiente social não está a melhorar”, sublinha o coordenador do projeto da MSF, Resit Elcin. “Há falta de meios de subsistência para as pessoas deslocadas, especialmente para as mulheres, e os esforços de proteção e prevenção mal chegam a ser implementados. A situação não está a evoluir positivamente.”

“As sobreviventes de violência sexual, tanto no estado de Benue, como em toda a Nigéria, merecem acesso a cuidados médicos sem custos e de qualidade, bem como apoio à saúde mental”, explica Resit.

“As mulheres e as raparigas precisam de ter acesso a bens e serviços, incluindo habitação segura e abrigos de emergência, assistência jurídica e meios de subsistência e apoio financeiro. A chave para prevenir a violência sexual é responder às necessidades humanitárias das pessoas e garantir que as mulheres em situação de vulnerabilidade estão seguras dentro dos campos.”

Kasia Strek

“As organizações humanitárias e de desenvolvimento, tanto locais como internacionais, devem trabalhar em conjunto com as autoridades nigerianas para garantir que o apoio médico e psicológico é disponibilizado gratuitamente às sobreviventes de violência sexual no estado de Benue, e de forma mais ampla, para apoiar as comunidades deslocadas a recuperar a dignidade e controlo sobre as suas vidas”, conclui Resit.

Em 2018, a MSF lançou uma resposta de emergência para prestar apoio a pessoas deslocadas no estado de Benue, fornecendo cuidados médicos, incluindo serviços de saúde sexual e reprodutiva e cuidados abrangentes para sobreviventes de violência sexual. Em 2023, as equipas da MSF em Benue providenciaram tratamento a mais de 1.700 sobreviventes de violência sexual.

*Os nomes foram alterados para proteger a identidade dos pacientes.

**Ao longo das atividades, a MSF apoiou principalmente comunidades agrícolas deslocadas e comunidades anfitriãs nos arredores dos campos de deslocados internos. É necessário fazer mais para compreender as necessidades humanitárias e de saúde das comunidades pastorícias e o impacto da violência.

Últimas notícias
Mais Vistos
Mais Vistos do