Grande Reportagem SIC

"Ai Mouraria, Ai Portugal": Grande Reportagem mostra como estão as vítimas do incêndio

Na Grande Reportagem a SIC mostra como estão as vítimas do incêndio que deflagrou no dia 4 de fevereiro deste ano e como vive a comunidade do sudeste asiática que se concentra na Mouraria.

"Ai Mouraria, Ai Portugal": Grande Reportagem mostra como estão as vítimas do incêndio
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Dimple Kumar aceita o convite para voltar ao prédio que ardeu no início da noite de 4 de fevereiro, porém ao se aproximar do rés-do-chão faltam-lhe as palavras. Agarra-se às tábuas de madeira que denunciam a tragédia. A morte inesperada, inexplicável e dolorosa de um filho de 14 anos é uma tragédia. Kumar aponta para dentro do edifício. Olha para cima. Engole as lágrimas. Quer contar o que viveu, mas, por agora, só consegue respirar no vazio da perda do filho acabado de chegar a Portugal.

Era a última noite de Kumar, da mulher, do filho e da filha naqueles cerca de 50 metros quadrados onde dormiam, comiam e estavam pelo menos 25 estrangeiros, a maioria indianos. Ali havia uma casa de banho, uma cozinha e vários problemas elétricos que Kumar diz que foi identificando e reportando a um indiano, a quem pagava 200 euros por cama, que devia avisar um outro indiano, que devia avisar a proprietária portuguesa.

A viver em Portugal há 4 anos, Kumar foi sempre tendo trabalho. Chegou a ser funcionário de um fabricante de sistemas de produção de energia renovável. Porém, no final do ano passado, foi atacado por uma mulher com uma faca. O tribunal deu-lhe razão e condenou a mulher ao pagamento de quase 16 mil euros de indemnização. Kumar ainda nada recebeu e já perdeu a mobilidade nos dedos, que duas cirurgias não devolveram, o que o impede de exercer o trabalho de eletricista em que é especialista.

O incêndio na rua do Terreirinho, na Mouraria, fez duas mortes e despertou as atenções para uma zona da cidade de Lisboa que é agora a face visível do problema da habitação na capital.

Como afirma Filipa Bolotinha, "há um problema de sobrelotação, de uma maneira geral, em Lisboa e há muita gente a viver com cinco ou seis pessoas" no mesmo espaço. Uma realidade que, garante a coordenadora-geral da associação "Renovar a Mouraria", não toca só aos estrangeiros.

"Eu não tenho ninguém a trabalhar na "Renovar a Mouraria" (alguns portugueses) que não tenha de partilhar casa ou com amigos ou com desconhecidos. E são técnicos superiores, têm um salário acima do salário médio português", explica Filipa Bolotinha.

"JÁ NÃO CHEIRA A LISBOA" NA MOURARIA

Na Mouraria concentra-se parte significativa da comunidade do sudeste asiático que tem vindo para Portugal à procura de legalização mais rápida. O secretário da associação "Portugal Multicultural Academy", Rasel Ahammed, também cidadão do Bangladesh, diz que quem entra, por exemplo, "em França, Itália ou na Alemanha, mesmo que viva nesses países 5 ou 10 anos, não consegue a legalização". Em Portugal, sim.

De acordo com dados da Pordata, em 2021, havia em Portugal quase 107 mil asiáticos, com estatuto legal de residente, num total de quase 699 mil estrangeiros também residentes legais.

Os Censos de 2021 apontam para mais de 50 nacionalidades só na Mouraria. Um caldeirão de gentes num bairro que tem tradição de reunir migrantes e marginalizados.

Para Luís Mendão, do "Grupo de Ativistas em Tratamentos" (GAT), o bairro no coração de Lisboa é o "gueto dos mouros, que na verdade também era o gueto dos judeus, há 800 anos. Tem sido o gueto da prostituição, o gueto da tolerância ao álcool e depois o gueto das drogas. E ainda o gueto dos imigrantes pobres. E é, nesse sentido, um gueto muitíssimo vibrante", conclui.

O Imã da Mesquita Central de Lisboa, Sheik David Munir não se coíbe de afirmar que ali "já não cheira a Lisboa".

Os comerciantes portugueses que ainda mantêm negócios abertos na Mouraria queixam-se da mudança "muito intensa e rápida", como é descrita por Inês Andrade. A gestora de projeto na "Renovar a Mouraria" contextualiza: "o contraste acabou por criar anticorpos em relação à chegada destas novas comunidades que vieram morar para aqui". "Uma população invisível", como descreve Filipa Bolotinha, se pensarmos nas condições em que vivem.

"DORMIMOS QUATRO POR QUARTO"

Desde o incêndio na rua do Terreirinho, na Mouraria, que as portas se fecham à televisão. Há receio de dizer se vivem muitos ou poucos em cada apartamento, em cada quarto. Mas basta entrar num prédio da rua do Benformoso para se ver o corrupio de gente com malas de viagem. Uns sobem, outros descem. Todos homens. Todos da Ásia e de África.

De acordo com a associação "Renovar a Mouraria", a maior parte dos que vivem no bairro vem do Nepal, depois do Bangladesh, Paquistão, Índia e, em quinto lugar, os portugueses. Muitos são jovens. Querem saber o que fazemos ali. E à pergunta "quantos vivem num apartamento?", respondem: "dormimos 4 por quarto" e "comemos ali em frente", num dos vários restaurantes de comida indiana na rua do Benformoso, que funcionam como cantinas. Cada homem paga entre 100 a 200 euros, para comer duas vezes, todos os dias do mês.

Dois quilómetros ao lado, no cruzamento da Avenida Almirante Reis com a Alameda D. Afonso Henriques, o que num dia é uma clínica dentária, num rés-do-chão com quase 400 metros quadrados, noutro dia já é um albergue improvisado, com beliches, colchões, pessoas lá deitadas, uma espécie de cozinha e nenhuma indicação no exterior relativa ao novo uso do espaço.

"O MEU FILHO ERA UMA DÁDIVA DE DEUS"

Dimple Kumar aceitou voltar ao local que lhe impôs o fim de um sonho porque, garante, quer dizer ao mundo que há muitos rés-do-chão, em Lisboa, que são bombas-relógio prestes a trazer a morte a centenas de cidadãos.

"O meu filho era uma dádiva de Deus", assegura enquanto nos olha nos olhos com a pergunta obrigatória: "porquê, Portugal"? Por que razão "o vosso país diz: 'venham que vos damos documentação' se depois não há trabalho e não há casas para morar"? E fica assim, suspenso no peito, um "ai Mouraria, ai Portugal" que não serve de resposta nem acalma a dor.

Ficha técnica:

Jornalista: Catarina Neves

catarinaneves@sic.impresa.pt

Repórter de imagem: Carlos Rosa

Imagens drone: 4KFly

Edição de Imagem: Vanda Paixão

Grafismo: Renato Mendonça

Produção Editorial: Diana Matias

Colorista: Jorge Carmo

Tradução: Farhana Akter

Legendagem: Spell

Coordenação: Jorge Araújo

Direção: Marta Brito dos Reis; Ricardo Costa

Música: "Não sei o que é que fica se corrermos mais" A garota não

Agradecimento a Cátia Mazari Oliveira e José Morais

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