Grande Reportagem SIC

Portugal também vai devolver objetos às antigas colónias?

Será que quase 50 anos depois das independências, Portugal vai seguir outros países que, como a França, aderiram a políticas de reparação histórica com as ex-colónias? Pretérito Imperfeito é a Grande Reportagem em dois episódios que a SIC exibe quinta e sexta-feira, no Jornal da Noite.

Portugal também vai devolver objetos às antigas colónias?
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Neste milénio invertem-se as rotas transatlânticas inauguradas pelos portugueses no século XV. Os artefactos que maravilharam gerações de europeus que nunca tinham visto um tambor-falante da Costa do Marfim, uma máscara dos Jurupixuna, que viveram na Amazónia até ao século XVIII ou um instrumento musical dos MunduruKu, do Pará, estão a regressar ao ponto de partida, aos territórios de onde foram trazidos há séculos.

Emmanuel Macron foi o grande impulsionador, na Europa, da política de devolução da arte extra-europeia. Sim, não é só de arte africana que falamos quando se discutem as obras retiradas das antigas colónias do oriente, das américas e das áfricas para o velho continente.

Em 2017, o recém- eleito Presidente da França desabafou perante uma plateia de jovens da Universidade de Ouagadougou, no Burkina Faso, que não podia aceitar que grande parte do património cultural africano estivesse em França e fez a promessa: "de devolução temporária ou definitiva de património africano a África". O relatório Savoy Sarr, encomendado pelo chefe de Estado gaulês, calculou que 90% do património cultural subsariano esteja no ocidente, em coleções particulares e públicas. Só no Museu du quai Branly, em Paris, foram identificadas 30 peças prioritárias para devolução num total de 70 mil objetos em exposição e nas reservas daquele museu que celebra a arte indígena das américas, de África, da Ásia e da Oceânia.


Em 2017, o Presidente francês prometeu devolver o património africano em solo gaulês
AP

Macron ainda não cumpriu a promessa que gerou contestação e polémica em França mas, no decurso destes seis anos, a antiga potência colonial já devolveu 26 peças ao antigo reino do Benim, hoje parte da Nigéria. No final de 2020, Madagáscar aceitou a devolução da coroa em metal dourado e veludo vermelho, símbolo do poder da rainha Ranavalona III, a monarca viu malgaxe que declarou guerra ao colono francês, no final do século XIX.

Em ambos os exemplos está provado que as peças foram obtidas num contexto de violência, pilhagem ou dominação colonial. Por exemplo, as cerca de cinco mil figuras e placas dos conhecidos bronzes do Benim foram saqueadas do palácio real do antigo reino do Benim, por militares britânicos em 1897, como resposta musculada ao ataque mortal aos membros de uma expedição britânica que desagradou ao Oba (governante) Ovonramwen.

As peças embarcadas para a Europa acabaram no British Museum, que detém o maior número de objetos daquele saque (900), ou em instituições alemãs e britânicas, além de particulares que as guardaram ou venderam. Em dezembro passado, a Alemanha seguiu as passadas francesas e também devolveu 21 bronzes do Benim, numa cerimónia que decorreu na Nigéria, entre os ministros dos negócios estrangeiros de ambos os estados.


Em 2022, a ministra dos negócios estrageiros alemães devolveu 21 bronzes ao antigo reino do Benim, hoje Nigéria
AP

Desculpas póstumas

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A política das devoluções culturais - cada vez mais generalizada - seria impensável no século XX, um período histórico marcado pelas declarações de independência das antigas colónias. Mais distante do calor dos acontecimentos, o início do milénio apresenta-se como a época reparadora dos excessos do passado colonial. O mundo ocidental assiste a consecutivos pedidos de perdão.

João Paulo II foi pioneiro a redimir-se perante os ameríndios, em 1992; Bento XVI secundou-o no reconhecimento das injustiças e sofrimento causados pelos colonizadores e Francisco reiterou as desculpas, pedindo em 2015, ao povo boliviano, perdão pela violência da conquista do continente americano.

No ano passado, os Países Baixos desculparam-se pelo papel esclavagista que tiveram nas Caraíbas. Também o monarca Belga mostrou arrependimento pelas atrocidades e mutilações ordenadas pelo antecessor Leopoldo II, no Congo, atual República Democrática do Congo, cujas provas, documentadas em fotografias, correram e chocaram - no princípio do século XX - o mundo.

As feridas deixadas na Namíbia pela ocupação germânica foram reconhecidas em 2021, quando Berlim admitiu o genocídio de 65 mil indivíduos dos povos Herero e 10 mil dos Nama, no início do século passado, naquele território da costa ocidental africana, dominado pelos alemães. Neste caso, o pedido de desculpas vem acompanhado de mil milhões de euros para programas de apoio ao que resta daquelas comunidades.

Portugal, as coroas espanhola e britânica nunca sentiram necessidade de solicitar clemência aos descendentes dos milhões de escravizados que transportaram nas travessias transatlânticas. Manuel López Obrador, Presidente da República Mexicana, tem sido insistente, tanto por escrito como através das redes sociais, a exigir um pedido de perdão da casa real espanhola, mas do Palácio da Zarzuela, só sopra silêncio.


Manuel López Obrador, Presidente do México, tem insistido com a coroa espanhola num pedido de perdão
Facebook Manuel López Obrador

Portugal não deu o passo e também nunca foi chamado a penitenciar-se pelo lado sombrio da expansão marítima: o comércio transatlântico massificado de pessoas escravizadas e, já depois da abolição da escravidão, em 1869, o recurso a trabalho forçado. O país é o recordista do tráfico negreiro, com o transporte documentado de mais de cinco milhões e meio de pessoas, juntamente com o Brasil pós-1822, como pode ser consultado na página Slave Trade Database.

Nas comemorações dos 49 anos do 25 de abril, Marcelo Rebelo de Sousa falou, pela primeira vez, em desculpas, no contexto da visita do Presidente Lula da Silva a Portugal "Não é apenas pedirmos desculpa, devida, por aquilo que fizemos porque pedir desculpa é, às vezes, o que há de mais fácil. Pede-se desculpa, vira-se as costas e está cumprida a função". Dizia o Presidente da República que Portugal tinha de assumir as responsabilidades futuras dos dois lados da moeda; o que deu uma unidade ao Brasil que outras nações sul americanas não conheceram e o lado mau da escravatura e da exploração dos povos originários.

Este é terreno muito escorregadio na era do politicamente correto. Que o diga Lula da Silva que, em 2005, na ilha de Goré, na costa do Senegal, de onde saíram muitos escravizados, pediu "perdão pelo que fizemos aos negros, mas já este ano foi criticado pelos ativistas do Movimento Negro Unificado por ter dito que a desgraça da escravatura teve, ao menos, uma consequência positiva que foi a mistura de negros, indígenas e europeus.

E Portugal, também vai devolver objetos às antigas colónias?

"A finalidade do estudo não é essa" (a devolução), Pedro Adão e Silva, o ministro da Cultura, declarou à Grande Reportagem que pretende estar preparado, leia-se documentado, para a eventualidade de algum Estado das antigas colónias fazer esse pedido.

Em 2022 constituiu um grupo informal de trabalho para estudar o contexto em que as peças vieram para Portugal. Nomeou o Diretor-Geral do Património, os diretores dos Museus Nacionais de Arte Antiga, Etnologia e Arqueologia e do Palácio da Ajuda para avaliar se as obras que estão há muito tempo inventariadas foram trazidas num contexto de pilhagem, violência ou mesmo se são de origem duvidosa e indeterminada.


Cabeça mumificada e outra reduzida de povos indígenas da Amazónia no Museu de Etnologia, em Lisboa
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"Portugal tem de estar preparado para se posicionar perante essa devolução. Não há nenhum pedido formal", declara o ministro consciente que, mais tarde ou mais cedo, o assunto lhe vai parar à secretária do gabinete onde trabalha, no Palácio Nacional da Ajuda. Local onde está patente a exposição do Tesouro Real, uma coleção de jóias únicas, com diamantes e ouro extraídos do Brasil, ainda português, com recurso a trabalho escravo.

Episodicamente o assunto leva à criação de títulos nos media brasileiros como "Devolvam nosso ouro" e, nas redes sociais, já se comenta o facto dos turistas brasileiros estarem a comprar bilhetes para ver o que era do Brasil. Pedro Adão e Silva não hesita em questionar sobre esse caso em particular: "O que é aqui a devolução? O ouro ou as peças que foram construídas a partir do ouro?".

Em 2021 o International Council of Museums (ICOM) desafiou 161 museus portugueses a dar informações sobre a origem das peças não europeias das suas coleções. Apenas 67 instituições responderam. Que leitura terá essa adesão quase nula dos museus nacionais?

Desconsideração, receio de perder património ou desconforto em regressar a um Pretérito Imperfeito? É esse o título da Grande Reportagem em dois episódios, que será exibida nos dias 22 e 23 de junho, na SIC.

Ficha Técnica:

Jornalista: Amélia Moura Ramos

Imagem: Hugo Neves, João Lúcio , Paulo Cepa e André Miguel

Edição de Imagem: Luís Gonçalves

Grafismo: Pedro Morais e Nuno Gonçalves

Produção Editorial: Diana Matias

Pós-produção Áudio: Octaviano Rodrigues

Colorista: Rui Branquinho

Iluminação: Bruno Godinho e André Gaspar

Drone: 4kFly

Legendagem: Spell

Assistente de Produção: Auly Ferreira e Mariano Fued

Coordenação: Jorge Araújo

Direção de Informação: Marta Brito dos Reis e Ricardo Costa

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