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Juiz Ivo Rosa foi investigado em dois processos-crime agora arquivados

Orlando Romano, ex-Procurador Geral Regional, mandou abrir os dois inquéritos no espaço de um mês por suspeitas de prevaricação, abuso de poder, usurpação de funções e violação de segredo de justiça. O Ministério Público no Supremo Tribunal de Justiça arquivou agora os processos, sem ouvir o magistrado nem testemunhas.

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Há anos figura polémica da Justiça, Ivo Rosa tomou posse em dezembro passado como desembargador do Tribunal da Relação de Lisboa. Nessa altura, no mesmo tribunal, corriam ainda os dois processos que, há quase dois anos, investigavam o juiz.

Numa declaração escrita à SIC, o magistrado garante que nunca lhe foi dado conhecimento de nenhum dos inquéritos:

“Não tive conhecimento, dado nunca ter sido convocado ou contactado para qualquer acto de inquérito, do conteúdo do mesmo, quais os fundamentos legais que determinaram a sua a abertura, assim como do alegado arquivamento”, diz o juiz desembargador Ivo Rosa.

Os inquéritos 20/22.4TRLSB e 60/22.3TRLSB, que a SIC consultou, nasceram com pouco mais de um mês de distância, no início de 2022 e ambos por ordem de Orlando Romano.

Antigo diretor do combate ao banditismo da Policia Judiciária (PJ) e ex-diretor nacional da PSP, Romano ocupava nessa altura o cargo de Procurador-Geral Regional de Lisboa. No dia 27 de janeiro desse ano recebeu uma exposição do responsável máximo do DCIAP, o departamento do Ministério Público que investiga os casos mais complexos.

Albano Pinto queixava-se que Ivo Rosa tinha ordenado a destruição de emails apreendidos pelo Ministério Público no chamado "caso das golas" ao então ministro da Administração Interna Eduardo Cabrita, ao secretário de Estado José Neves, ao presidente da Proteção Civil, Mourato Nunes, e a outros 10 suspeitos, a quem o magistrado mandou também notificar e, por consequência, dar conhecimento que tinham sido investigados.

O processo já tinha passado por outros juízes de instrução, mas quando lhe chegou às mãos, Ivo Rosa entendeu que as apreensões não tinham tido autorização judicial e decretou que era prova proibida.

Indignados, os três procuradores que conduziam a investigação alegaram que tinha havido violação de caso julgado e violação de reserva da titularidade do Ministério Público. Ivo Rosa, entretanto, tinha ficado em exclusividade com a instrução do caso BES, e a reclamação dos procuradores acabou por ir parar às mãos do seu substituto nos outros processos: o juiz Carlos Alexandre.

Com uma visão diametralmente oposta à do colega do "Ticão", Carlos Alexandre não hesitou em declarar inexistente a decisão de Ivo Rosa e autorizou o MP a aceder aos dados apreendidos.

Não satisfeito com isso, o diretor do DCIAP avançou com a queixa contra Ivo Rosa, alertando para os possíveis efeitos nefastos do comportamento do magistrado na investigação daquele e de outros casos:

“O mesmo juiz continua a sobrepor os seus entendimentos aos dos colegas e do MP, tudo como se fosse ele o único observador da legalidade ou a única pessoa que se preocupa com ela e pudesse intervir no inquérito a bel-prazer”, Albano Pinto, ex-diretor DCIAP, a 27 janeiro de 2022.

Perante a exposição, Orlando Romano concluiu que podiam estar em causa crimes de violação do segredo de justiça e denegação de justiça e no mesmo dia mandou registar e distribuir o inquérito.

Ainda não tinha passado um mês e uma semana quando, a 8 de março, Romano assina a abertura do segundo inquérito contra Ivo Rosa. No 60/22.3TRLSB são ainda mais os crimes sob suspeita. Para além da denegação de justiça, este inquérito, que a SIC noticiou, levantava também a hipótese do juiz ter cometido usurpação de funções e abuso de poder.

O rastilho dessa investigação foi um acórdão do Tribunal da Relação de fevereiro desse ano, que criticava Ivo Rosa por ter invalidado todos os atos praticados durante as férias judiciais por colegas seus, juízes do Tribunal Central de Instrução Criminal, entre os quais Carlos Alexandre, num processo relacionado com a apreensão de contas bancárias no caso Luanda Leaks.

Os desembargadores concordaram com o MP que Ivo Rosa tinha usurpado funções do tribunal superior, violando os princípios do caso julgado formal e o esgotamento do poder jurisdicional. No final do acórdão, um dos juízes da Relação fez ainda questão de deixar registado que ia dar conhecimento ao Conselho Superior da Magistratura daquilo que chamou de "vicissitudes dos autos". A comunicação viria a dar origem a um processo disciplinar a Ivo Rosa.

Mas, para lá das questões do foro disciplinar, Orlando Romano entendeu, novamente, que podia haver matéria criminal contra o magistrado e, desta vez, com palavras duras contra Rosa, no despacho manuscrito que deu início ao inquérito crime:

“O sr. Juiz proferiu a decisão aqui em causa perfeitamente consciente do que fez, pois qualquer principiante de direito conhece estas regras legais. Este comportamento tem vindo a repetir-se, não sendo portanto esta situação qualquer descuido, negligência ou caso único, mas sim uma situação bem consciente. E claramente contra direito", Orlando Romano, ex-Procurador-Geral Regional de Lisboa 8 março de 2022.

Durante meses, os dois processos crime arrastaram-se no Ministério Público junto do Tribunal da Relação, praticamente sem diligências de investigação e sem intervenção de qualquer órgão de polícia criminal.

O primeiro processo ainda chegou a ser levado a uma juiza desembargadora, quando Olga Caldeira, a procuradora Geral Adjunta a quem foi distribuído o inquérito, resolveu pedir a aplicação do segredo de justiça, por forma a poder realizar diligências de inquérito "com secretismo".

No papel de juíza de instrução, a desembargadora Maria Leonor Botelho concordou que o segredo era essencial “para que a recolha de prova seja feita de forma serena e livre, e salvaguardar os direitos da pessoa sob investigação.”

A recolha de prova, no entanto, limitou-se a pedidos insistentes ao DCIAP sobre o andamento do processo das golas, e o pedido sobre a identificação completa do juiz ao Conselho Superior da Magistratura, que respondeu com o nome completo, data de nascimento e morada do magistrado.

No segundo processo também quase nada foi feito, para além de pedidos idênticos ao DCIAP e ao CSM.

Até que a 27 de setembro do ano passado, o órgão de disciplina dos juízes dá conhecimento ao titular dos inquéritos que o processo disciplinar que visava Ivo Rosa tinha sido arquivado, ainda que com 3 votos contra, entre os quais o do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, que achavam que Ivo Rosa devia ser castigado com 120 dias de suspensão, por "violação grave e dolosa do dever de obediência à Constituição e à lei e por interferência ilegitima na atividade jurisdicional de outros juízes".

Um entendimento oposto aos outros 14 membros do plenário do Conselho Superior da Magistratura:

"Entendeu o CSM que os atos imputados se enquadram no âmbito do exercício do poder e da função jurisdicional, não sendo passíveis de escrutínio disciplinar pelo CSM. Concluiu que limitando-se a conduta imputada à prolação de despachos judiciais a violação de deveres funcionais apenas poderia ocorrer caso tais despachos tivessem sido produzidos com abuso de poder ou com falta de zelo, o que não sucede por se verificar que os despachos em causa estão fundamentados e assentes em interpretações doutrinais e jurisprudências aceites e segundo a consciência jurídica do juiz."

Mesmo resolvida a questão disciplinar, os processos crime resistiram ainda mais três meses e em dezembro os dois volumes - um de cada processo - fizeram uma viagem de poucas dezenas de metros, da Praça do Município para a Praça do Comércio. Com a tomada de posse de Ivo Rosa como juiz da Relação de Lisboa, os inquéritos tiveram que ser transferidos para o Ministério Público junto do Supremo Tribunal de Justiça, com competência para investigar juízes desembagadores.

No Supremo, ambos os processos foram distribuídos ao Procurador-Geral Adjunto José Ribeiro de Albuquerque que, em pouco mais de quinze dias, deitou por terra todas as suspeitas e decretou a morte das duas investigações.

A 8 de janeiro, assinou o primeiro despacho de arquivamento, justificando em 17 páginas que os factos que estavam em causa já tinham sido escrutinados num processo disciplinar:

"Não sendo ilícitos disciplinares os factos imputados ao juiz visado, não havendo violação de deveres funcionais, mas antes o seu cumprimento, então os mesmos factos não podem ser ilícitos à luz da lei penal", José Ribeiro de Albuquerque - Procurador-Geral Adjunto STJ - 8 jan 2024.

No dia seguinte, no despacho que encerrou o processo 20/22, Ribeiro de Albuquerque deixou escrito que não descortinou factos juridicamente relevantes para imputar qualquer responsabilidade criminal a Ivo Rosa por violação do segredo de justiça. Quanto ao eventual crime de denegação de justiça, o procurador apoiou-se novamente no resultado do processo disciplinar, mesmo que este não tenha analisado nenhum dos factos que deram origem a este processo-crime. Eram suspeitas semelhantes, concluiu o Procurador.

"É uma apreciação com evidentes consequências para o casos em apreço, pois não sendo ilícitos disciplinares os factos similares imputados ao juiz visado, não havendo violação de deveres funcionais, mas antes o seu cumprimento, então os mesmo factos não podem ser ilícitos à luz da lei penal", José Ribeiro de Albuquerque - Procurador-Geral Adjunto STJ - 9 jan 2024

Sem encontrar crimes, o representante do Ministério Público do Supremo mandou arquivar os autos, não vendo necessidade de ouvir testemunhas, nem sequer o alvo das investigações, que nunca chegou a ser constituído arguido.

À SIC, Ivo Rosa acusa o Ministério Público de intromissão na sua atividade como juiz:

“Um juiz só é independente se lhe garantirem que não responde, cível, criminal ou disciplinarmente pela decisão que proferiu ou que não será prejudicado na sua carreira porque a decisão por si proferida não agradou aos seus destinatários. Não estando em causa, como é evidente, qualquer comportamento não jurisdicional e não existindo qualquer notícia de crime, não restam dúvidas que a decisão de abrir um inquérito-crime contra um juiz apenas por este, no exercício da sua jurisdição e nas vestes de juiz, não ter acolhido a posição do Ministério Público, implica uma intromissão e uma ameaça à independência e à irresponsabilidade dos juízes”, Ivo Rosa - juiz desembargador.

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