É quarta-feira e, por isso, dia de recolha dos caixotes do papel, segundo o regulamento da Câmara. Quer dizer que sacos de plástico com outros resíduos não podem ser levados das ruas de Campolide. "Está a ver este saco? Não podemos levar para não contaminar o resto. Amanhã estão cá mais uns quantos encostados a esse... e depois a culpa é nossa". Armando Silva é motorista e foi cantoneiro. Trabalha há 34 anos para a Câmara de Lisboa e é o mais velho da equipa de três pessoas que hoje faz um percurso de cerca de 30 km.
O que a gente recebe não chega para o que a gente limpa.
"Hoje vamos carregar uns 400 caixotes, porque é dia do papel e é quarta-feira, é um dia mais calmo. Depois do fim de semana é pior". O salário de 700 euros para os mais novos e de 757€ para quem trabalha há mais de três décadas troca as voltas nas contas às toneladas de lixo transportadas por noite. "Sei que a Câmara não me pode dar mais, tenho de fazer um esforço e fazer mais horas para levar mais qualquer coisa."
O turno começa às 22h00, termina às 05h30 e já inclui hora e meia extra para que o serviço possa ser terminado. "Às vezes há carros que avariam, é preciso fazer mais um frete, tudo para que de manhã as pessoas possam encontrar a cidade limpa", diz satisfeito. "Gosto do que faço, por acaso é uma das coisas que gosto", completa.
Ninguém aguenta, nem as máquinas.
A profissão não é considerada de risco, e essa é uma das reivindicações dos sindicatos, que se reuniram com Carlos Moedas na manhã desta terça-feira. A dureza do trabalho agravou-se com a descentralização de competências da Câmara para as Juntas de Freguesia em 2014. Antes, a rotatividade de funções permitia algum descanso, mas agora, motoristas e cantoneiros cumprem o turno da mesma forma, mês após mês. Aumenta o risco de lesão o que num setor com falta de pessoal agrava o cenário.
São 365 dias atrás de um carro, a subir, a descer, a correr, a vazar contentores, é cansativo. Basta um deslize, uma distração, é o suficiente para se aleijarem e irem para o seguro. Ninguém aguenta, nem as máquinas aguentam, muito menos os homens", explica o motorista Manuel Gomes. Há 25 anos que trabalha para a Câmara e, além do salário, alerta para o impacto das horas de trabalho noturnas. "Não dá para dormir à hora de dormir, não se descansa verdadeiramente.
Vítor Reis, do Sindicato dos Trabalhadores do Município, lembra a transferência para as Juntas de 800 trabalhadores aquando da descentralização de competências. "Desde aí, a articulação tornou-se mais difícil", confirma. Armando coloca-se na posição de munícipe para dizer que a limpeza das vias piorou desde essa altura e no que diz respeito ao seu trabalho, não entende o passa-culpas. "A Junta diz que lhes pertence, a Câmara diz que paga à Junta, por isso é trabalho da Junta, a Junta diz que o lixo não é competência deles, depois eles fazem, mas os carros são os da Câmara, não se entende".
Um problema com muitas camadas.
A confirmação por parte da Câmara da entrada faseada de 190 pessoas até setembro - 160 cantoneiros e 30 motoristas -, não faz esquecer o problema da morosidade dos concursos públicos. Cada vez menos pessoas se candidatam, por ser uma carreira muito pouco atrativa, e é difícil que alguém espere um ano sem arranjar outro trabalho.
Além da falta de profissionais, também os carros de trabalho passaram a ser reparados em oficinas, o que tem levado ao aumento do tempo em que estão fora de circulação. "Já tem acontecido haver motoristas e não haver carros, haver carros e motoristas, mas não haver cantoneiros, e depois tem de se optar por qual é a zona em que não se tira o lixo", explica Manuel. "Somos nós que ouvimos as pessoas. Passa o carro, os cantoneiros e elas falam connosco. As reclamações reagem sobre nós, não é sobre a Câmara nem sobre as Juntas de Freguesia", diz com alguma tristeza.
Com a retoma da economia e o regresso do turismo, há mais lixo, mas sindicatos e trabalhadores alertam para um problema de fundo. Pedem sensibilização para o cumprimento de regras por parte dos munícipes, valorização da carreira e melhores condições de trabalho. Armando e Manuel insistem em sublinhar que a greve da semana passada (da Valorsul, empresa envolvida no tratamento de resíduos) em nada teve a ver com os trabalhadores da Câmara e que fizeram mesmo um esforço para que o máximo de lixo fosse recolhido. "As pessoas na rua até podem ver mais lixo, mas não é, de certeza, por falta de trabalho nosso", remata Manuel.