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Dia da Mulher: quando na (alta) cozinha há menos espaço para Elas

Chef Louise Bourrat quis fazer da cozinha do Boubou's um espaço seguro para todos.

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O dia começa mais cedo no Boubou's, restaurante no Príncipe Real, que Alexis Bourrat abriu depois de o Brexit lhe fechar a porta. A irmã Louise é a chef responsável. Chegou, depois de uma viagem pela América do Sul, a Lisboa, para abraçar uma Portugalidade que a mãe - portuguesa - quis abandonar quando emigrou para França. "Foi uma integração muito difícil para ela, não falava a língua, procurou ser mais francesa do que portuguesa para se integrar". Mas pela avó chegou à cozinha portuguesa e elege o Bacalhau à Brás como o melhor prato "de sempre", diz a sorrir na sala do Boubou's.

Serve cerca de 40 pessoas ao jantar, quatro dias por semana, entre terça e domingo. Por volta da hora de almoço, chega a equipa que vai preparar a base para a alta cozinha: pincelam-se delicadas folhas de massa, laminam-se legumes vários, testam-se as fórmulas para as pastas que vão sair dos sacos de confeitar devidamente etiquetados. A cozinha é um espaço de organização e concentração em tarefas já muito ensaiadas e testadas. Mas há dias que começam mais cedo para alguns. Foi o caso, com um encontro a que chamam "workshop" para criar e testar novas ideias. Louise, a chef, e as sous chefs Clémentine e Marta estiveram esta manhã a debater à volta de uma peça de porco preto.

Clémentine Duboin mudou-se para Portugal em setembro de 2022 e no mesmo mês começou a trabalhar no Boubou's. Veio para o país porque queria especificamente trabalhar com Louise Bourrat - vencedora do Top Chef 2022 em França - e acabou a perceber como a multiculturalidade é também um ingrediente importante na cozinha. Já trabalhou em França e acredita que não há tanto espaço para a entrada de outras culturas nos pratos.

Hoje estão a explorar sabores que estão relacionados com a carne de porco à Alentejana. A francesa estranha a referência à combinação com peixe, pelas ameijoas, mas a colega Marta Nunes explica. Trocam impressões. A chef duvida das suas prórpias escolhas. Há um debate. É algo que nem sempre se vê nas cozinhas. "Sinto que a minha voz é mais facilmente ouvida, mais rapidamente chego a lugar em que posso dar opiniões", explica Marta, que também decidiu vir ao restaurante falar com a chef diretamente depois de vê-la vencer a final do concurso francês. "Vim cá, falei com a chef, e depois mudei de trabalho", afirma.

"Sentia falta da parte feminina, queria trabalhar numa cozinha que não fosse só dominada por homens", mas a questão não é exclusiva do Dia da Mulher. "Já pensei muitas vezes nisto. Os grandes chefs com quem trabalhei ou conversei, todos começaram na cozinha por causa de figuras femininas: as mães, as avós...", mas parece haver falta de referências femininas na alta cozinha. "Já há nomes, mais do que antes, mas trabalhar tão de perto com tanto conhecimento faz-me crer que realmente é possível, que está só nas minhas mãos, que é uma questão de trabalho e dedicação", diz Marta. "Durante muito tempo não foi assim, por isso é que é necessário relembrar que tem de haver espaço para toda a gente".

Louise Bourrat arrisca a dizer que o lado do espetáculo da alta cuisine, o lado da "performance", acaba por ser "mais alinhado com a energia masculina. Nas cozinhas mais tradicionais há mais mulheres. Na alta cozinha é preciso mais coragem para uma mulher poder chegar mais longe, é incutido pela sociedade, as mulheres duvidam mais de si", mas concorda com o tempo de mudança que se vive. "A paisagem gastronómica está a mudar, no Porto por exemplo, cá com a Marlene Vieira, e outras, somos mais e mais e mais, mas aí também entra a revolução feminina. Sentimos que há espaço. E se não há, nós criamos esse espaço".

Foi nisso que pensou ao criar a equipa do Boubou's. Há muitas mulheres, mas também homens. Louise acredita que ser mulher atrai mais mulheres ou mais homens que procurem um ambiente de trabalho diferente. "Em Portugal não sei como é, mas em França há um problema com a falta de respeito, há muita violência física e psicológica", denuncia. Marta diz que "nesta cozinha não há gritos", o importante é errar menos todos os dias.

É nesta cozinha que tem espaço para que o sonho se torne mais realista. Há mais mulheres a ambicionar chegar mais longe e luta por distinções como a Estrela Michelin. É o caso da chef Louise Bourrat, que acredita ser uma questão de tempo até uma mulher alcançar o galardão.

Este ano, realizou-se a primeira gala em Portugal e nenhuma mulher foi premiada. "Esperava-se uma chuva de Estrelas, mas houve uma chuva de recomendações e isso aumenta o conhecimento do território português, dos restaurantes portugueses", sublinha Louise, que quer deixar claro: "não somos um restaurante de cozinha francesa, não somos um restaurante de comida portuguesa". Marta ajuda a clarificar: "diria que é uma cozinha de fusão e criativa, colorida, sem dúvida". "Cada vez tentamos ir mais pela sustentabilidade, prolongar a vida de ingredientes que têm uma sazonalidade mais curta para usar ao longo do ano, quer com fermentados, lactofermentados... tem sido essa a nossa investigação", remata.

Como num laboratório, fazem-se experiências e acertam-se as fórmulas. Cria-se um improviso calculado, com cada ingrediente e medida a ser apontado em cadernos e etiquetas. O porco preto há-de dar um prato para o qual ainda há dúvidas sobre o molho, com base no prato alentejano mas com yuzu, um citrino japonês, em vez da tradicional laranja, e toques de algas. Há em cima da bancada uma pasta de malaguetas que no Japão é servida com a carne wagyu muito gordurosa, tal como o porco biológico que saiu embalado em vácuo de uma quinta do Alentejo, e até uma forma de bolos em forma de cão, para inspirar um verdadeiro "hotdog" com brioche. "Não há limites". Palavra da chef.

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