Dança, Mariana, dança

Dança, Mariana, dança

Mariana ficou sem pernas depois de um acidente em criança. Mas não foi isso que a impediu de se tornar bailarina na Companhia “Dançando com a a Diferença.”

Há um grupo a afundar-se num mar de papel que se transforma num coro posicionado numa tribuna. É uma das cenas do espetáculo “Mal – Embriaguez Divina”, da coreógrafa Marlene Monteiro Freitas que foi apresentado no grande auditório do Teatro Rivoli, no Porto. Um “mergulho” na ambivalência do mal traduzida em inquietação, dor e sofrimento e tendo como pano de fundo o conflito israelo-palestiniano.

Entre o corpo de bailarinos de várias nacionalidades, cores e estruturas físicas, Maria Domingos Tembe, com o nome artístico de Mariana, dança, apesar de não ter as duas pernas. De 33 anos, nascida e criada em Maputo, Moçambique, reside hoje na Ilha da Madeira, onde faz parte da Companhia “Dançando com a Diferença.”

Corria o ano de 1996, tinha ela seis anos e brincava na rua quando foi atropelada por um camião. “Lembro-me desse dia como se fosse ontem. Estava a brincar com os meus amigos à saída da igreja, no caminho para casa e corríamos de um lado para o outro, quando de repente do outro lado da rua apareceu um camião, daqueles militares.” Tão distraída estava com a brincadeira que, ao atravessar a rua foi atropelada. “Tentei levantar-me, mas estava zonza e debaixo do camião Enquanto isso, a minha irmã mais velha puxava me pelos braços chorando e eu não estava a aperceber-me nada até ver que as minhas pernas estavam esmagadas e todas as crianças estavam chorando.”

Transportada para o hospital, só quando acordou percebeu que já não tinha pernas.

E foi ali que nasceu a Mariana.

A dança, por acaso

Não foi por escolha, mas por acaso que entrou no mundo da dança. Em 2006, foi abordada na rua por uma mulher desconhecida. “Falou-me de um projeto de inclusão de pessoas com e sem deficiência na área cultural e convidou-me a ir assistir os ensaios. O projeto era dirigido e orientado pelo Panaibra Gabriel Canda (moçambicano) coreógrafo e diretor artístico da companhia “Culturate”, conta. “No primeiro dia que fui ao ensaio foi estranho, na verdade fiquei surpresa ao ver muita gente com deficiência física diversificada no mesmo espaço a dançar e todos felizes. Juntei-me a eles, mas não foi uma experiência positiva para mim, que havia jurado a que não voltava nunca mais. Só que no dia seguinte fui lá por curiosidade e aquilo durou duas semanas até que descobri o meu potencial e nunca mais parei.”

Há dois anos que Mariana integra a Companhia Dançando com a Diferença, na Madeira, cuja direção artística é de Henrique Amoedo. Criada há 21 anos, mantém a sua motivação e objetivos: “Promover a Inclusão Social e Cultural através da Dança Inclusiva; Modificar a imagem social das pessoas com deficiência e conquistar espaços para a diversidade humana no universo profissional das Artes Contemporâneas e desenvolver o potencial criativo, produtivo e a valorização profissional dos grupos inclusivos, estimulando o trabalho em equipa e a evolução das sociedades no sentido da valorização das capacidades e não discriminação das pessoas com deficiência, com a sua inclusão nos mais variados setores sociais”, diz Amoedo.

Estes foram os desafios que lançou quando decidiu deixar o Brasil e vir para Portugal, dando continuidade à sua atividade com bailarinos com e sem deficiência na Companhia “Roda Viva Companhia de Dança.” Aprofundou os seus conhecimentos académicos, orientando-os para a construção do conceito de Dança Inclusiva até que recebeu um convite do então Serviço de Arte e Criatividade da Direção Regional de Educação Especial e Reabilitação da Madeira para desenvolver o seu trabalho “Tinham naquela altura um trabalho incrível e bem desenvolvido junto das populações com deficiência nas áreas das artes visuais, música e teatro, faltando apenas a dança”, diz Henrique Amoedo. Foi o início de “Dançando com a Diferença.”

O mais gratificante - as conquistas diárias

É a esta companhia que Mariana Tembe pertence, juntando-se a cerca de cem pessoas, jovens e adultos, de diferentes origens, com e sem deficiências, vivendo na Madeira ou em Viseu, onde desde 2017 em estreita parceria com o Teatro Viriato, existe um Núcleo Artístico-Pedagógico que ambiciona ser o polo para a ampla disseminação das práticas e projetos em Dança Inclusiva.

Aos candidatos é apenas exigido “que queiram dançar e fazer parte desta nossa família muito numerosa”, sublinha Amoedo, notando que o “tempo” é dos “elementos mais difíceis” deste trabalho. “Volvidos 21 anos em prol da modificação da imagem social da pessoa com deficiência, e um foco centrado na inclusão social e profissional deste segmento da população na sociedade portuguesa, sentimos que os progressos são lentos e feitos de pequenos passos e iminentes recuos.”

O mais gratificante são “as conquistas diárias, os pequenos ganhos individuais que nos fazem continuar a trabalhar com grande afinco. Quer seja no palco, quer seja no dia-a-dia, todas as conquistas pessoais e profissionais alcançadas são recompensadoras.”

Conquistas que enriquecem os projetos em construção. “Encontramo-nos, neste momento, a desenvolver a criação de duas novas obras; uma com o coreógrafo francês, François Chaignaud e outra com a coreógrafa luso-cabo-verdiana Marlene Monteiro Freitas. São duas formas de expressão completamente diferentes que prometem enriquecer a nossa companhia em torno de diferentes temáticas e abordagens estético-artísticas, aproximando-nos dos diferentes questionamentos contemporâneos sobre a sociedade.”

No palco, Mariana Tembe experimenta um conjunto de sentimentos e de emoções. “Sinto que é um momento mágico, em que me entrego de corpo e alma, focando-me naquele momento como se o mundo lá fora não existisse. Dançando sinto uma liberdade de me expressar sem limites, vivenciando a interação entre o personagem e o público.”

Participar no espetáculo de Marlene Monteiro Freitas foi, para Mariana, “uma honra enorme, a realização de um sonho enquanto bailarina.”

Para o futuro, tem planos, embora “incertos” mas o verdadeiramente lhe interessa é “continuar a dançar até que a onda da vida em palcos me trave . . . permitir - me voar e voar pra onde o vento me levar.”