Coronavírus

"Não sabia como ia acordar. Estava muito assustada"

Rita, Filipa e Andreia conviveram de perto com o coronavírus, cada uma com experiências diferentes. O marido de Andreia esteve internado duas semanas com covid-19 e a filha também esteve infetada, em junho do ano passado. A Rita, a Filipa e a família de ambas estiveram infetadas no último mês. Os sintomas foram ligeiros, mas as preocupações iam além disso. À SIC Notícias, falaram sobre os receios que sentiram e de como ultrapassaram os dias difíceis.

"Não sabia como ia acordar. Estava muito assustada"

Rita confessou que a ansiedade que sentiu foi pior que os sintomas ligeiros da doença. Depois do susto de ter testado positivo, Filipa e a família arranjaram formas de lidar com o stress. Andreia acha que as marcas do tempo em que teve o marido internado e a filha infetada com um vírus desconhecido ficam para sempre.

"Quando comecei a falar sobre estes tempos até estava emocionada. Tenho a certeza que deixará marcas a nível psicológico", desabafou.

Passaram seis meses desde que o marido e a filha estiveram infetados com covid-19, mas Andreia Pina ainda se emociona. À SIC Notícias, confessou que as noites eram complicadas. O marido, Paulo, esteve internado durante duas semanas no Centro Hospitalar Barreiro Montijo, no Barreiro.

"Eu mandava-lhe mensagem à noite. Se ele não respondesse, ficava a noite toda à espera. Ou de manhã, entre eu enviar mensagem e ele responder, tinha muita ansiedade", contou.

Paulo esteve quase a ser transferido para o Hospital de São José, em Lisboa, porque o organismo não estava a reagir à medicação. Para Andreia foram tempos de revolta, com "momentos difíceis". O marido, Paulo, corria todos os dias 10 quilómetros e não tinha doenças associadas.

Já Filipa Eutíquio, que sofre de stress pós-traumático, "ficou sem chão" quando testou positivo.

"Comecei a chorar desalmadamente porque me caiu a ficha e só pensava como é que o meu corpo ia reagir, se ia ter sintomas ou se ia despertar alguma doença que nunca deu sinais. Comecei a imaginar os piores cenários", disse à SIC Notícias.

A primeira a testar positivo foi a mãe, que trabalha num lar e é testada todas as semanas. "Faço atletismo, por isso tenho que sair de casa para correr. No dia 8 de janeiro, estava a arranjar-me para ir treinar quando o meu pai me disse para não sair de casa porque o resultado do teste da minha mãe tinha dado positivo", relatou.

O vírus também entrou em casa de Rita Cruz.

"Foi um sentimento de revolta e impotência. Não havia mais nada que eu pudesse fazer. Não me junto com ninguém desde março, sou cuidadosa, desinfeto as compras e, mesmo assim, o vírus chegou cá. Eu estava infetada, não sabia como ia ser dali para a frente e também não podia evitar o contacto com o meu filho, que tem tendência para problemas respiratórios", disse Rita.

Em entrevista à SIC Notícias, o psicólogo clínico e forense Mauro Paulino reconheceu, entre os infetados ou familiares de doentes covid, este sentimento de impotência, de "não conseguirem ajudar e até quererem acelerar a cura para poder estar perto".

A primeira a testar positivo, em meados de dezembro, foi a mãe de Rita, que mora no mesmo prédio, na Amadora. Depois confirmou-se: a irmã, de 16 anos, também estava infetada e uns dias mais tarde o marido. A Rita foi a última da família a ficar infetada. Testou positivo no segundo teste que fez. Um mês depois conta que, para ela, pior que os sintomas da doença, foi a ansiedade que sentiu. O vírus "mexe muito a nível psicológico", disse. Confessa que chegou a ter medo de dormir por não saber como ia acordar na manhã seguinte. Trocou os sonos pelos pensamentos. Ainda hoje, um mês depois, "sofre com isso", conta.

O psicólogo Mauro Paulino explicou que a forma como as pessoas infetadas se sentem a nível psicológico vai "depender muito dos sintomas que estão a vivenciar", além das "características de personalidade que podem levar a que lidem melhor ou pior com as circunstâncias". No entanto, o especialista assinala um padrão: o medo de terem infetado outras pessoas, sobretudo se pertencerem a grupos de risco. A fadiga é também apontada como uma das coisas mais comuns.

"É já reconhecido pela comunidade científica este sentimento de exaustão, de cansaço. Adicionalmente, há uma curiosidade que tem a ver com o estigma ou o medo das pessoas que estão infetadas têm que terceiros saibam do seu estado clínico e possam, de alguma forma, estigmatizá-las ou desrespeitá-las", explicou o psicólogo.

O resultado "positivo" e os primeiros dias

O marido de Andreia Pina começou a ter os primeiros sintomas em meados de junho. Não sabe onde ficou infetado. Andreia, Paulo e a filha Benedita estavam em teletrabalho desde março. Saíam apenas para "coisas normais", como ir às compras ou praticar exercício ao ar livre. "A vida acontecia em casa", contou Andreia à SIC Notícias.

No dia 12 de junho, Paulo correu 10 quilómetros. No dia seguinte acordou a sentir-se "muito mal, febril". "Isolámo-lo, ligamos para a SNS24 e mandaram-no fazer teste. Nessa madrugada, ele soube logo o resultado: estava infetado", relatou a professora do 1.º ciclo.

Depois da confirmação, seguiram-se dores no corpo e febre alta que não baixava. Chegou a trocar de pijama duas vezes durante a noite porque "ficava mesmo molhado" com a febre. "Os sintomas não se assemelhavam a uma simples gripe. Era uma coisa diferente, bastante forte", descreveu Andreia. Paulo foi observado no hospital e acabou por lá ficar 15 dias com uma pneumonia bilateral. Andreia teve receio pela filha.

"Pensei que o meu marido não estava em casa. Se eu ficasse igual a ele ou com sintomas semelhantes e tivesse de ser internada, quem é que cuidava dela?", disse, admitindo que houve momentos em que se sentiu "desesperada" para nada lhes acontecesse.

No fim do isolamento foram as duas testadas. Andreia não estava infetada, mas a filha, assintomática, testou positivo: "Foi complicado, sentia revolta. Pensava na razão de isto estar a acontecer à minha família".

Andreia sentia que a filha andava ansiosa com uma "agitação que não era própria dela". Descreve-a como uma criança com muita energia e que, mesmo infetada, "fazia o pino no corredor". No entanto, sentiu a filha diferente: acordou algumas vezes com pesadelos, começou a ter medo do escuro e não queria adormecer sozinha. Por recomendação de um enfermeiro, Benedita começou a dormir a sesta "para os dias não parecerem tão compridos".

"Situações novas e inesperadas acabam por gerar mais angústia às crianças. O importante é comunicar e permitir que a criança possa expressar os seus sentimentos, seja medo, tristeza ou dúvidas. Há atividades que podem ser promovidas, como brincar e desenhar, para se sentirem num ambiente seguro e solidário", explicou o psicólogo Mauro Paulino à SIC Notícias.

Para o especialista, um jogo com sorrisos em que a criança aponte para o que está a sentir, por exemplo, pode "servir de convite" para exprimir as preocupações. Explicarem que há um limite de tempo para o isolamento também pode ser uma opção para dar confiança e esperança à criança. E aconselha: "ter um calendário em que vai pintando, riscando, assinalando os dias que estão a passar, ajuda-a a perceber os dias que faltam para terminar o isolamento. Se isto for gerido com serenidade por parte dos adultos, acaba por ajudar as crianças a beberem dessa serenidade".

Já na família de Rita não foi preciso internamento, mas Rita sentiu-se assustada. O marido ficou isolado na sala porque testou positivo primeiro. Só saía para ir à casa de banho. O filho do casal, André, via o pai apenas pelos vidros da porta da sala. Era assim que comunicavam.

"Era stressante porque tinha de tomar conta do André e cuidar do meu marido. Perguntava-lhe constantemente como se sentia. O meu filho estava muito triste por não estar ao pé do pai, mas aceitava. Com quatro anos, tinha consciência. Não ia à casa de banho sem me perguntar se eu a tinha desinfetado", contou.

Dias depois, com sintomas ligeiros, Rita testou positivo. Sentiu-se febril uma vez: "A pessoa sabe que é uma dor de cabeça diferente das que costuma ter". Teve também uma sensação de "garganta arranhada" e, no final do isolamento, perdeu o olfato e parcialmente o paladar. O pequeno André foi o único com teste negativo.

"Não sabia como ia acordar amanhã. Sabia que hoje estávamos bem, mas não sabia como é que ia acordar no dia seguinte, que sintomas íamos manifestar. Estava muito assustada", disse.

Foi assim que Rita se sentiu durante mais de 30 dias, desde o momento em que a mãe testou positivo até que o filho finalmente pôde sair do isolamento, pois também ele esteve em contacto com uma pessoa infetada.

"É muito difícil e angustiante lidarmos com as contrariedades. Estamos preparados para as evidências, para doenças que ouvimos falar. Podemos ter um acidente vascular cerebral de um momento para o outro, é certo, mas acho que são situações que sabemos que acontecem desde sempre e que o nosso cérebro consegue ignorar. Mas a covid-19 foge ao normal porque é desconhecida", afirmou.

André sentia-se triste por não poder estar ao pé do pai. Só o via através da porta da sala. O psicólogo Mauro Paulino explicou à SIC Notícia que o contacto regular nos períodos de isolamento, mesmo em divisões da casa distintas, é importante para as crianças não sentirem as rotinas alteradas. Videochamadas e jogos como "aquela espécie de telefone sem fio", em que o adulto está num lado da divisão e a criança no outro, pode ajudar neste processo.

No caso de Filipa, estava "bastante confiante" que ia testar negativo, apesar da mãe estar infetada. Raramente partilhavam o mesmo espaço, uma vez que a mãe trabalha num lar. Não queriam pôr os idosos em risco.

"Há quase um ano que não abraço nem dou um beijo à minha mãe. Na altura em que estamos não vale a pena metermos os outros em perigo", disse.

Mas tanto Filipa como o pai testaram positivo. A jovem, com algum "sentimento de culpa", como descreve, avisou a escola e uma pessoa com quem tinha estado em contacto sem máscara.

"O ambiente em casa não era o melhor porque estávamos todos muito stressados e sobrecarregados com o que se estava a passar", descreveu.

Isolados cada um em seu sítio porque "não queriam estar em contacto", criaram um método que os tranquilizou: "Combinámos horários de refeições, cada um tinha a sua própria louça, que levava e desinfetava imediatamente quando a usava". Agora, Filipa considera que lidou bastante bem com alguma ansiedade que sentiu. Também porque já tem mecanismos para lidar com determinadas perturbações, uma vez que sofre de stress pós-traumático.

Uma infeção de covid-19 pode levar a “algum cansaço” de pessoas do mesmo agregado familiar. Segundo o psicólogo Mauro Paulino, é importante "atenuar o impacto da situação".

"A comunicação dentro do agregado familiar faz toda a diferença para que a pessoa que possa estar a sentir uma sobrecarga mais intensa não tenha de limpar a casa ou cozinhar todos os dias", aconselha o psicólogo e acrescenta um exemplo: "Um familiar com teste negativo estando num contexto de sobrecarga revela menos paciência para a pessoa que está infetada e entra-se numa espiral de aumento de tensão que não é benéfica para lidar com exigências da pandemia".

Como ocupavam o tempo (e o cérebro) e uma palavra amiga

Andreia ocupava o tempo a dar aulas à distância. A infeção do marido e da filha coincidiu com o final do ano letivo. O tempo que lhe restava era dedicado a Benedita.

"Temos uma varanda e um terraço onde dava para apanharmos sol e ela andava de bicicleta e trotinete. Tomávamos o pequeno-almoço na varanda, fazíamos jogos, brincávamos, montámos uma piscina pequena na varanda e fazíamos exercício", contou.

As compras eram asseguradas pelos pais de Andreia que, com com a filha e a neta em isolamento e o genro internado, regressaram da aldeia em Castelo Branco onde estavam há meses para se protegerem da pandemia.

A nível emocional, Andreia apoiou-se na família, em algumas amigas e no próprio marido que, mesmo no hospital, a "sossegou muito". A professora contou à SIC Notícias que o acompanhamento que teve do enfermeiro responsável pelo caso "foi muito importante": "Ligava-me todos os dias. Ao falar com uma pessoa da área da saúde ficava mais tranquila".

Rita Cruz, que passou pela doença há menos de um mês, ficava mais tranquila com “algumas terapias que percebeu que resultavam" com ela: respirar fundo, ir à janela apanhar ar, ler um livro, falar sobre a covid e sobre o que está a sentir. Tentava arranjar coisas para se distrair. É isso que aconselha, dentro das possibilidades, a quem está a passar agora pela infeção.

Já Filipa Eutíquio tinha aulas online, por norma, das 9:00 às 18:00. Também cozinhava e lavava e desinfetava tudo o que usava. Quando começou a sentir-se melhor, passou a fazer exercício em casa: "Ajudou-me bastante a lidar com tudo o que estava a passar".

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A jovem tinha também o apoio dos amigos que lhe ligavam todos os dias "com uma palavra de apoio de que ia ficar tudo bem". A sofrer de stress pós-traumático e ataques de ansiedade e de pânico, Filipa já tem mecanismos próprios mas mesmo assim admite: "Nada nos prepara para uma situação destas".

O psicólogo clínico e forense Mauro Paulino identifica "a rede de apoio familiar" como importante no processo: "O apoio não pode ser físico, mas pode fazer-se sentir pelas mensagens e videochamadas, conversas em que quem está longe acaba por estar mais perto com recurso a tecnologias".

Além disso, em momentos de ansiedade e stress apela a atividades de autocuidado.

"A pessoa pode estar atenta às suas emoções, expressá-las num diário, procurar ter contacto com familiares e amigos dentro daquilo que são os horários que cada um pode ter, viver um dia de cada vez no sentido em que se deve concentrar no aqui e agora, fazer jogos, preparar uma refeição que gostaria e que não teve tempo antes, fazer exercício, ler um livro, ver filmes", explicou.

Na conversa de quase uma hora que teve com a SIC Notícias, Andreia Pina identificou o momento de viragem para se sentir melhor. Aconteceu quando aceitou o que se estava a passar.

"Se não aceitarmos estamos a lutar contra duas coisas: o vírus e a nossa cabeça. Em relação ao vírus não podemos fazer nada porque já está no nosso corpo, mas em relação ao nosso cérebro podemos mudá-lo, tentar encarar como uma coisa que vamos ultrapassar. Se o fizermos, é menos uma luta. Termos dois polos negativos é muito complicado", disse.

O pós-covid

Quando Paulo, o marido de Andreia, teve alta e se deslocou do piso do internamento até ao carro, as pernas tremiam. A confiança veio aos poucos com caminhadas. No início sentia-se exausto, mas um mês depois conseguiu voltar a correr.

O facto de não fumar, ser desportista e não ter outras doenças facilitou a recuperação da pneumonia, explicou-lhes o médico. O marido de Andreia está, para já, sem mazelas. Passaram seis meses desde que esteve infetado.

Agora, Andreia relembra o que sentiu e apela à aceitação:

"O melhor é não pensar na razão para estar a acontecer. A partir do momento em que aceitamos, encontramos força para conseguir superar os sintomas. Temos de olhar para o vírus como se fosse uma situação passageira".

Na família de Rita também estão bem. Para trás fica um mês de angústia. No presente, há a vontade de uma vida mais calma: "Não acredito que o mundo vá voltar a ser como era antes. Eu nunca desejei tanto morar numa casinha num sítio mais isolado e com um terreno. Como o mundo está, as pessoas que moram em sítios mais isolados, que conseguem ir à rua sem multidões, têm muitas vantagens a nível da saúde mental".

O psicólogo Mauro Paulino explicou que os sintomas de ansiedade, depressão e stress são habituais e, nalguns contextos, stress pós-traumático, que pode levar a que "tenham medo de tocar em objetos” e evitem estar com outras pessoas “em contextos sociais".

Filipa Eutíquio diz que está na altura de "normalizar que há dias difíceis" e que "não há problema nisso": "Nem todos temos a vida resolvida, como muitas vezes se faz parecer. Há coisas que não dependem de nós, como a infeção de covid-19. Em vez de guardarmos o que sentimos, podemos procurar alguém com quem o possamos partilhar para tirarmos esse peso do peito e nos sentirmos melhor".

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